Sou padre há 25 anos (jubileu) na diocese do Rio de Janeiro,
mestre em teologia sistemático-pastoral pela PUC-RJ e doutor em ciência da
religião pela PUC-SP. Como religioso católico, acolho a notícia do samba enredo
da manguieira para o carnaval de 2020 como uma provocação às igrejas cristãs amordaçadas
neste momento dramático e trágico na história do Brasil. Provocar
("provocare") é "chamar para a briga", incitar, desafiar...
Desse modo, o samba enredo da Mangueira de 2020 "A VERDADE VOS FARÁ LIVRES”
pode constituir um desafio aos que se dizem cristãos! Certa feita, num livro antigo de Leonardo Boff,
conheci o termo "profecia externa". Para o teólogo, a expressão se
referia a possibilidade de a sociedade, de diversificada forma, exercer a
profecia, isso é, falar em nome de Deus na defesa da vida.
Dizendo de outro
modo, pessoas e grupos, como, por exemplo, movimentos sociais, em princípio,
não religiosos, podem, as vezes com mais coragem do que os que se dizem
seguidores ou seguidoras de Jesus, viver e lutar por um mundo de amor, justiça,
igualdade, democracia e paz. Nesse horizonte, recebo o samba enredo da
Mangueira como "profecia externa". O último pleito eleitoral revelou
setores cristãos (católicos e evangélicos) despudoradamente aliados à grupos políticos
promotores da violência e da matança dos pobres e indefesos. De forma explícita
e velada grupos cristãos se apresentaram como coniventes dos esquadrões da
morte. E todos esses grupos tem hoje nas mãos o sangue dos Wajãpi e responderão
no juízo final por suas vidas brutalmente ceifadas. Muitos cristãos, sobretudo
da hierarquia religiosa, jamais seriam capazes de assassinar, mas isso não os
impede de amolar a faca para que outros o façam. Em resumo, a capacidade de o
cristianismo ser aliado dos vitimizados da história foi mais uma vez,
terrivelmente, posta em cheque. De que lado estão os cristãos: do lado das
vítimas ou dos carrascos? A Bíblia está repleta da denúncia acerca de profetas
que se venderam e se calaram diante das atrocidades da história. O próprio
Jesus aventou a possibilidade de, em face do silenciamento dos profetas, as
pedras se pronunciarem na defesa da vida ("as pedras gritarão").
Então, é na contramão da apresentação, por parte de muitos cristãos, de um
Jesus Cristo "açucarado", conivente e insensível ante a dor dos
pobres e segregados de toda sorte (indígenas, negros, mulheres, gays, terreiros
etc...), que a Estação Primeira de Mangueira, a meu juízo, profeticamente, pode estar mais próxima do
Jesus dos Evangelhos do que muitos que não tiram a Bíblia debaixo dos braços e
sabem citar de cor quaisquer capítulos ou versículos. Terá a narrativa da
Mangueira mais pertinência e relevância que a dos doutos (e quase sempre
arrolhados e encastelados) biblistas?
A propósito, o termo "Evangelho" quer dizer
notícia feliz, interessante, oportuna e significante... De certo, é razoável
pensar que o que interessa às vítimas seja diametralmente oposto ao que
interessa aos verdugos; a notícia oportuna à senzala não é a mesma desejada
pela casa grande.
Considerando que Jesus não é propriedade privada de nenhuma
igreja e que o Espirito Santo é livre e, por isso, fala onde quer e como quer,
é possível pensar num Deus falando na Sapucaí, infelizmente, as vezes de forma
mais potente do que nas igrejas.
Ler o Evangelho é também um ato político, uma interpretação
que nasce de um "lugar de fala", nos termos de Djamila Ribeiro. E não
existe leitura (inclusive, bíblica) neutra!
Praza Deus, o discurso da Mangueira, como diz Conceição
Evaristo, consiga, na potência evangélica do samba, acordar a casa grande de
seus sonos injustos!
A Verdade que liberta o oprimido, ao mesmo tempo, desnuda e
denuncia as mentiras do opressor!
Desejo, pois, que as igrejas cristãs se convertam do olhar colonialista,
preconceituoso e racista para com o carnaval e tantas outras expressões
culturais e religiosas afro-brasileiras. É hora de passarmos de uma política vincadamente
policialesca para uma política do diálogo e da troca positiva. Ademais, o samba
também evangeliza, inclusive aos que se dizem cristãos! Se as
"pedras" podem profetizar, por que o samba não pode?
Vale repetir: o Espírito Santo é livre e sopra onde quer! As
vezes fala onde menos se espera... Deus é desconcertante!
Da minha parte, como pesquisador das religiosidades das
populações subalternizadas, estou, pessoal e visceralmente, ansioso e esperançoso
para ver/ouvir a exegese bíblica do Samba, a versão, a hermenêutica de colonial
de Leandro Vieira - o Evangelho de Jesus segundo a Estação Primeira de
Mangueira!
Por Padre Gegê.
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