No ano de 1974 minha mãe
resolveu ir a São Paulo, capital. Ela tinha adquirido um box no CEAPA – Centro de
Abastecimentos de Paulo Afonso, que na verdade era o local onde dava início a
feira grande da cidade. Naquele ano, eu e meus irmãos estávamos agoniando o juízo
dela para comprar uma televisão. Era ano de copa do mundo e nós já não aguentávamos
de ir ver TV na casa dos vizinhos. Tinha dia que éramos recebidos bem, outros com
silêncio e muitos com o povo da casa de cara feia.
Minha mãe viajou de ônibus. E
no seu retorno trouxe, para alegria de todos uma Telefunken de 20 polegadas,
preto e branco. Nos reunimos todos na sala para às 16h ela ser ligada. Demorou
porque alguém teve que vir colocar uma antena pé de galinha. E isso, demorava
pra zorra. E na hora marcada, depois de falarmos a todo mundo que tínhamos uma
televisão vinda de São Paulo, estávamos nós lá. E o técnico sobe, mexe, desce,
mexe, sobe, desce... e nada da imagem aparecer. Tava tudo preto. Foi quando veio a frase:
- Acho que queimou alguma
coisa nela. Disse aquele “fí de quenga”.
A decepção em meu rosto era
tão grande que fui para o quarto e chorei. Estava morrendo de vergonha de todos
que ali estavam para ver a “minha TV”. E para piorar a situação eu ouvi risos
na calçada e gente dizendo:
- Essa aí não presta mais.
No dia seguinte meu pai chamou
uma carroça de burro, colocou a bendita da TV nela e fomos todos, como se fosse
uma romaria, até a loja do Gaguinho que concertava de tudo que fizesse barulho.
Ao chegar lá, eu ainda me lembro, tinha um monte de outros aparelhos encima de
umas mesas. Tava na cara que a nossa ia ficar por lá também. E adeus copa do
mundo. Mas três dias depois ela estava de volta a casa e agora, funcionando.
Eu então com onze anos de
idade gostava mesmo era dos filmes de bang-bang que passava. Assistimos à
seleção jogar e ser eliminada.
No ano seguinte eu fui estudar no turno vespertino na Casa da Criança 2. Tive que me adaptar a programação. Todas
as manhas eu assistia as patetagens na TV. A que eu mais gostava era da Pantera
Cor de Rosa. Que na verdade era cinza escuro e cinza claro. Mas a imaginação
corria solta naqueles tempos.
Na escola tinha uma professora,
Dona Célia. E estava na mesma sala que eu, sua filha. Eu ficava mordido de
raiva porque aquela garota sabia muito mais do que todos os outros dos assuntos
dados para estudar.
- Deixa disso. Ela é filha da
professora. Deve ser por isso que é mais inteligente do que nós. Sentenciou
Roberto. Um amigo naquele ano.
Durante os intervalos das
aulas, eu que levava meu exército de soldados e índios tirava tudo da bolsa e
ia brincar no pequeno jardim que tinha dentro da sala. O local servia como
entrada de ar. Depois de um tempo, a filha da professora e outras meninas foram
se chegando. E eu fui gostando. E elas só queriam brincar com os meus
brinquedos. E eu fui ouvindo elas. E ouvindo palavras que nunca tinha dito ou
ouvindo antes. Eu fui achando interessante estar perto delas.
- Já falei com minha mãe. Na sexta-feira,
vamos sair no intervalo e todos vamos lá pra casa para ver desenho animado.
“Ver o que?”, pensei eu. Eu
que nunca tinha ouvido antes aquilo, fiquei louco para descobrir o que danado
passava na televisão dela que não passava na de casa. Eram tantas
perguntas na minha cabeça e uma única certeza. Eu tinha que ir e saber o que
danado era aquilo.
Mas tinha um problema. Ninguém
tinha me convidado. Como então ir? Decidi colar em Roberto na quinta-feira. Ele
tinha sido convidado. E se um convidado convida mil, e o dono da festa coloca
mil e um para fora. Eu só me importava chegar lá e descobrir o que era Desenho
Animado que elas assistiam.
Fiquei tão grudado em meu
amigo e nelas, que foi a primeira vez que percebi que elas olhavam atravessado para
mim. Mesmo assim, eu estava decidido. E quando chegou a sexta-feira eu já
estava pronto, fazia tempo. Quando terminou a segunda aula, logo que tocou a
sineta e vi a turma ir saindo, eu colei junto. Vocês não imaginam o que é uma
criança se sentir rejeita e mesmo assim seguir firme. A dor é maior do que ser
rejeita e dar meia volta. Mais eu tinha um objetivo traçado. Descobrir o que eu
desconhecia.
Chegando na casa. Todos
entraram e eu e Roberto ficamos por últimos. Na sala, todas os espaços do sofá
estavam ocupados. Tinham umas três almofadas no canto. Olhei e...
- Minha mãe não gosta que
peguem as almofadas dela. Disse aquela garota chata.
Sentei ao lado do sofá com os
olhos vidrados na TV. Espera o bendito do tal do desenho animado. Mas a
programação era igual à que eu já tinha visto lá em casa.
- Vai começar, vai começar...
informou a filha da professora.
Eu fiquei em silêncio. Olhando
a TV que nem piscava os olhos. Vendo passar uma das histórias da pantera cor de
rosa que, também, já tina visto na minha Telefunken. Depois de uns quatro,
cinco minutos, eu comecei a olhar o rosto daquelas pessoas com sorrisos que
mostravam seus dentes bem tratados. E do meu, não saia um único movimento que
indicasse alegria ou felicidade. Esperei terminar aquela primeira parte do
desenho e me levantei para anunciar:
- Pessoal, eu já vou. Se eu
demorar minha mãe vai ficar preocupada e eu não avisei a ela que viria para cá.
Foi um tal de, “tá bom”, “ok”,
“vá lá”, e quem nada dissesse alguma coisa, que eu acredito que estavam mesmo todos querendo se verem livres da minha presença naquele local.
Vim pela rua com uma raiva arretada
de mim mesmo. Como eu não soube antes que patetagem e desenho animado eram a
mesma coisa.
Chegando já perto de casa, fui
chamando a todos os amigos e amigas de infância para irem até a minha casa para
vermos juntos, desenho animado. A todos que eu falei, a cara mais próxima da
realidade que me lembro foi a que bateu os ombros e deixou claro, sem falar
nada, “o que danado era isso?”
Eu não me perdoou até hoje de
ter que ter passado por tudo aquilo para descobrir que patetagem e desenho
animado eram a mesma coisa. A única diferença era o grupo em que eu vivia. Mas
que patetagem era bem melhor de se ver, isso era. A turma lá em casa deitava no
chão da sala, sentava no sofá e colocava os pés nele. Mesmo levando broca de
mãe. E quase toda tarde tinha cajuína com pão doce. Isso sim era bom de se
viver.