A ameaça reacionária não é
fato nem novo nem isolado, mas agora se instala no cume do poder mundial.
Diante de dois péssimos
candidatos, o eleitorado norte-americano, dividido ideologicamente como jamais
esteve, escolheu, após campanha do mais baixo nível, aquele que lhe pareceu a
negação do establishment, exatamente Donald Trump, figura heterodoxa do sistema
(não fôra ele um bilionário de Walt Street), o único ‘não político’,
multimilionário desde o berço, outsider na política, devedor do fisco e ao
mesmo tempo defensor de menos impostos para os ricos, e militante contra a
política de saúde social de seu antecessor.
O 45ª presidente
norte-americano, depois de derrotar de forma avassaladora o Partido Republicano
e suas lideranças mais conspícuas, impondo-se como candidato contra a vontade
da máquina, fez de sua campanha uma plataforma do reacionarismo mais primário,
da xenofobia e do protecionismo (uma ameaça não só à União Europeia mas a países
como o Brasil, a Índia e a China, entre outros grandes exportadores).
Mas prometeu isolacionismo,
o que soa como música aos ouvidos de todos, porque pode ser traduzido como
menos intervencionismo político na América Latina (apesar de suas ameaças ao Mexico)
e menos invasões militares no resto do mundo. A propósito, nos últimos anos de
Bush e Obama, os EUA intervieram e destruíram o Iraque, a Líbia e a Síria,
depois de destruírem o Afeganistão, e por essas tragédias estamos todos pagando
– enquanto cada vez mais aufere lucros a miserável indústria da guerra.
De outra parte, na disputa
dentro do Partido Democrata, a ex-secretária de Estado, que sempre simbolizou o
continuísmo (com republicanos ou democratas) era o nome da máquina contra o
senador Bernie Sanders, que representava, ele sim, o sentimento de mudança.
A vitória de Trump
representa, nas circunstâncias, a derrota do neoliberalismo ortodoxo, da
financeirização da economia, a derrota da mídia americana (segundo ele
“desonesta e enviesada”) e da mídia mundial, como dos institutos de pesquisa em
todo o globo.
Mas o presidente eleito é,
ao mesmo tempo, o candidato grotesco que desmoralizou os partidos, a política,
seus ritos, seus fins, sua teleologia, reduzindo-a à insignificância da
inutilidade. Esse Trump, antes das eleições rejeitado por 59% do eleitorado, candidato
populista de extrema-direita que nos lembra uma composição que misturasse Maluf
e um Bolsonaro qualquer com uma pitada de Sílvio Santos, não é, porém, obra do
acaso, fruto que é da crise política dos EUA, da crise econômica e da crise
ética, e de seu sistema político; é a falência do processo eleitoral e da
democracia representativa nos EUA, o esgotamento de um ciclo que se encerra sem
anunciar novos tempos, senão a promessa de muita apreensão.
É a falência do sistema
eleitoral, inepto, como demonstrou a eleição do Bush filho, fundada na fraude e
no desrespeito à vontade majoritária, desrespeito que se repete nas pouco
representativas eleições deste mês: 231 milhões de eleitores numa população de
320 milhões; 46,9% dos habilitados não votaram; 25,6% votaram em Hillary e
25,5%, em Trump.
A derrotada recebeu 250 mil
votos a mais que o vencedor. É a agonia do bipartidarismo, a falência do
Partido Democrata, derrotado na política e nas urnas, e a derrota do Partido
Republicano, que teve se assimilar um candidato imposto de fora para dentro e
com o qual não se identificou na campanha.
Mas essa eleição não pode
ficar no grotesco nem pode demonizar o poder da soberania do voto, como querem
analistas apressados dos dois lados do Atlântico. Como em nossa crise cabocla,
é preciso considerar ingredientes tradicionais como o desemprego, a queda da
renda individual, a pauperização das grandes massas (hoje, 46 milhões de
norte-americanos dependem do food stamp, o ‘bolsa família’ deles) o
endividamento, a moradia precária, a violência e, em país beligerante,
permanentemente em guerra, o cansaço ante tantas intervenções e tantas invasões
e tantas bases militares cobrindo a Terra.
Além disso, o medo em face
do terrorismo difuso, o legado dos 16 anos de Bush-Obama, por seu turno a
continuidade política da beligerância de Clinton, sucessor de Bush-pai,
herdeiro de Nixon e Reagan, herdeiro de Johnson, herdeiro de Kennedy…
É evidente que está sob
comentário fenômeno recente embora há muito anunciado – aguda guinada direitista
dos EUA – e qualquer análise não passará de tentativa de antevisão, com todos
os riscos inerentes. Se é possível antever o frustrado governo Hillary –
preeminência do establishment, do complexo militar-industrial, dos falcões da
política externa, do fortalecimento da OTAN e do crescimento das dificuldades
com a Rússia e tudo o que de tudo isso é mero desdobramento –, relativamente a
Trump qualquer previsão é mais insegura.
Dir-se-á, e apostamos nessa
hipótese, que a complexidade do sistema político governante, com seus pesos e
contrapesos que promovem o controle social e político, absorvendo as crises – o
complexo militar-industrial de que nos falava Eisenhower, o Congresso, Wall
Street, o Pentágono, CIA e FBI, a Suprema Corte – estaria vacinada contra
aventureiros.
Mas nada disso impediu a
loucura democrata no Vietnã nem a irresponsabilidade republicana no Iraque. De
outra parte, Trump assume contando com o apoio (que faltou a Obama) tanto da
Câmara dos Representantes quanto do Senado (o Partido Republicano renovou sua
maioria em ambas as Casas) e com reais possibilidades (preencherá três vagas)
de influir na composição da Suprema Corte.
Diz um comentarista nativo
que Trump venceu por haver convencido o eleitorado de que era sincero, ou seja,
que ele próprio acreditava em suas ideias, mais precisamente nas ideias que
expunha como suas.
Ora a questão central é o
fato de essas ideias impregnadas de ódio e discriminação (sinceras ou não, bem
ou mal transmitidas), haverem encontrado eco nos EUA profundos: o discurso
contra os latinos de um modo geral e os mexicanos de forma particular (“Quando
o México envia suas pessoas [para os EUA], eles não estão mandando seus
melhores […] Eles estão trazendo drogas, crime. São estupradores. […] Eu vou
construir um grandioso muro em nossas fronteiras. E vou fazer o México pagar
por ele”), o discurso contra os imigrantes de um modo geral (promete expulsar
11 milhões de imigrantes em situação irregular) mas contra os muçulmanos de um
modo particular, dos deficientes, dos intelectuais, das mulheres ‘modernas’,
pós-feministas e independentes, a ladainha contra aliados políticos e militares
dos EUA e da OTAN em especial, as ameaças (por enquanto comerciais) à China, a
quem acusa de haver deflagrado uma espécie de guerra econômica contra seu país.
Observe-se, de passagem, que
a China, com um caixa de 1,244 trilhão de dólares de títulos da dívida pública
dos EUA, é seu principal credor.
Como já foi observado, o
problema não é Donald Trump, mas o fato de parcela considerável do eleitorado
dos EUA, após quase dois anos de campanha eleitoral, se haverem convencido de
que tal personagem podia ser presidente da República.
O problema não é esse
personagem, mas a fragilidade do sistema democrático dos EUA que – depois de
Reagan e Bush – enseja sua emergência, a partir de uma campanha fundada no
ódio, na exclusão, na divisão, na segregação, na política de terra arrasada
(para anunciar um novo EUA teve de primeiro decretar a derrocada do atual).
O fato objetivo,
desagradável mas real, é que o novo presidente reflete uma sociedade dividida,
clivada em seus valores mais profundos, falando mais alto que todos (nas
eleições) os valores majoritários do americano branco classe-média,
principalmente aquele que vive na América rural, a qual assegurou a Trump
vitórias decisivas em Estados chamados “pêndulo” (por indicarem nas eleições
uma tendência para a qual se inclinaria o eleitorado nacional), como Flórida,
Ohio e Carolina do Norte, ressentido com os efeitos da globalização e da
imigração.
Não é fato novo, porém, esse
avanço da direita e da extrema-direita em sociedades desenvolvidas: assim
marcha a política na Alemanha, na Polônia, na França, na Áustria, na Hungria,
na Turquia e no Reino Unido, de que constitui eloquente sintoma a rejeição inglesa
à Comunidade Europeia, como símbolo de unificação e globalização. Em ambos os
casos, nas vitórias de Trump e do Brexit, houve a clara derrota das elites
locais.
Mesmo entre nós, inclusive
na América do Sul (a eleição de Macri, na Argentina, o “não” ao acordo de Paz
na Colômbia, a crise na Venezuela) e no Brasil, essa ameaça reacionária não é
fato nem novo nem isolado. E agora se instala no cume do poder político mundial,
do poder econômico e do poder militar (tudo isso ao mesmo tempo), compreendendo
o controle do mais poderoso arsenal atômico jamais conhecido pela humanidade.
Não é, pois, uma ameaça
trivial. A questão não é Donald Trump, mas os EUA que estão emergindo desse 8
de novembro (o resultado chocante veio a lume em 9/11 o que sugere um curioso,
e um tanto sinistro, espelhamento com o 11/9).
Donald Trump, porém, na
presidência, poderá ser algo diverso do candidato grotesco, e dessa metamorfose
já deu sinais em seu discurso logo após o reconhecimento da eleição. Metade
dele foi de uma frivolidade e de um vazio dolorosos. Outra é ambígua: ele faz o
discurso conciliatório de todo vencedor (e não menos de alguém preocupado com o
bom funcionamento dos mercados), mas ao mesmo tempo cria imagens de
reconstrução de um pais devastado. Poderá mesmo ser um acelerador do processo
histórico, acentuado contradições.
Há ainda pouco indicadores
de como será Donald Trump instalado no salão oval da Casa Branca, aí então à mercê
de suas circunstâncias. Por enquanto, um enigma.
Roberto Amaral é escritor e
ex-ministro de Ciência e Tecnologia