O primeiro ministro Alexis Tsipras não recorreu à TV
comercial para anunciar o check-mate que deu à Troika (FMI, Banco Central
Europeu e União Europeia). Fez questão de valer-se da ERT , a TV Pública da
Grécia, que ele havia reinaugurado havia apenas 17 dias, depois de ter sido,
ignominiosamente fechada há dois anos pelo último governo neoliberal imposto ao
Parlamento pela mesma Troika.
A reativação da ERT e a recontratação dos seus 2.600
funcionários são muito simbólicas não só para a Grécia, como também para o
resto do mundo, hoje quase todo submetido à ditadura mercado-midiática. Esta
varre da concorrência qualquer veleidade de instituição pública na área da
comunicação para beneficiar verdadeiros mamutes comunicacionais que controlam a
informação e entorpece as consciências.
Ao colocá-la fora do ar, a zero hora de de 12 de junho de
2013, o governo pró-Troika de Antónis Samarás, que também congelou e diminuiu
salários e aposentadorias de toda a população, achou que tivesse exterminado
para sempre uma das experiências mais bem-sucedidas da TV europeia, desde seu
surgimento, em 1938.
Vejamos quem era o autor do decreto: Samarás, um político de
direita escolhido a dedo como premiê, numa eleição viciada, com muita pressão
econômica, em 2012. Ele sucedeu no cargo a Lukas Papadimos, um ex-executivo da
Goldman Sachs e do BCE, imposto ao Parlamento grego pela Troika, sem qualquer
eleição, nas mesmas bases da indicação de Mário Monti, outro executivo da
Goldman, que substituiu, também sem eleição, a Silvio Berlusconi na Itália, no mesmo
ano. Papadimos passou mais de um ano no cargo para fazer o trabalho sujo,
depois legitimado por Antónis Samarás.
Na verdade, o decreto de fechamento da ERT chocou o mundo
pelo rudeza do golpe na comunicação democrática e na cultura grega. Mas houve
reação: seus funcionários demitidos se organizaram em cooperativa e a
recolocaram no ar, primeiro através da internet, e, em seguida, pelo sistema
analógico, ainda que em condições precárias porque quase clandestinas.
A luta desses bravos jornalistas, artistas, músicos e
técnicos acabou constituindo a principal bandeira de campanha do premiê
Tsipras, que fez questão de cumpri-la numa grande festa no último dia 12 de
junho, quando acabava de vir de Bruxelas, onde sofrera novas pressões e
ultimatos para impor mais sacrifício a seus compatriotas, ao longo das
intermináveis reuniões com os representantes da Troika sobre a dívida grega.
A história do fechamento da ERP é também a história de um
estupro cultural, muito ao gosto dos mercados para impingir hábitos e atitudes
alienígenas que nada têm a ver com a história ou o sentimento do povo helênico,
mas que rendem lucros fabulosos à indústria do entretenimento capitaneada por
Hollywood. É que a ERP era também constituída, além de seus quatro canais de TV
e quatro de rádio, de uma orquestra sinfônica e um coral (daí o número
expressivo do pessoal, que foi muito usado para atribuir um suposto inchaço do
órgão estatal).
O compromisso de Tsipras, o governante que ousou enfrentar o
poder mundial da economia, concentrado na Troika, ao convocar um referendo para
que o povo decidisse se aceita ou não as suas imposições para conceder novo
empréstimo ao país, é também de restabelecer os outros órgãos da ERP. O novo
líder, que vai completar 41 anos no ida 28 de julho, é presidente do partido de
esquerda Synaspismos (SYN), lidera da Coligação da Esquerda (Syrisa), eleita em
25 de janeiro, com cerca de 70% dos votos, com o compromisso de construir um
modelo econômico e social menos dependente e mais inclusivo na Grécia.
Ele forma, juntamente com Pablo Iglesias, líder do partido
espanhol Podemos, que acaba de obter considerável sucesso nas eleições
municipais de maio e se prepara para pleitear o poder nacional no pleito de de
dezembro, a nova geração de líderes anti-neoliberais. Eles têm como inspiração
os modelos nacionais de desenvolvimento com inclusão de Hugo Chávez, Kirchner,
Evo Morales e Lula, na América Latina.
Ao tomar posse como premiê, em 26 de janeiro, Tsipras
anunciou que a solução para a crise da dívida externa da Grécia poderia estar
numa adaptação da tática adotada pelo ex-presidente da Argentina, Néstor
Kirchner, em 2003. Na época, quando a Argentina vivia situação semelhante à da
Grécia, com o chamado corralito, Kirchner reuniu os credores, muitos deles da
mesma Troika, propondo-lhes a reestruturação da dívida. Alertou, porém, que o
país, que dois anos antes havia quebrado e se declarado impossibilitado de
cumprir seus compromissos, só podia pagar 25% do que devia. Os credores não
tiveram outra alternativa que atender às condições impostas por Kirchner. A
partir daí, a Argentina saiu do fundo do poço e iniciou um novo ciclo de
desenvolvimento e soberania, que fez baixar o índice de desemprego de 25% para
7%.
Tsipras, porém, encontrou forte resistência dos credores a
seu plano. Eles queriam, na realidade, novas medidas para extorquir os já
combalidos salários dos gregos, com diminuição das aposentadorias, aumento do
imposto de valor agregado de 13% para 23% e um corte monumental nos gastos e
investimentos públicos.
Convencidos de que poderiam dobrar o jovem e operoso líder,
da mesma forma que tinham feito com o líder do Pasok (social-democracia),
George Papamdreu, obrigado a desconvocar um referendo da mesma natureza, em
2009, os credores, ou seja, a Troika, também queriam evitar que uma rebeldia da
Grécia pudesse ter um efeito contagioso na Espanha e na Itália, vítimas das
mesmas políticas de arrocho e com um índice de desemprego e recessão à beira do
intolerável.
Tsipras não se deixou envolver nem pelas ameaças nem pelo
cortejo que lhe fizeram nestes meses de negociação e, numa política de fato
consumado, convocou de surpresa o referendo para o próximo domingo, cinco de
julho. Com isso, afrontou todo tipo de risco que sua decisão poderia implicar:
corrida aos bancos, falta de dinheiro e protestos nas ruas, logicamente
alimentados por uma direita ainda poderosa e disposta a tudo para reduzir a pó
a recém experiência nacionalista do Syriza.
Uma articulada política anti-crise, jamais imaginada por
parte de uma liderança quase inexperiente, evitava até o final da redação deste
post, qualquer distúrbio capaz de comprometer a paz interna e a lisura do
próximo referendo. Medidas inteligentes como o fechamento dos bancos em uma
semana, os quais só puderam abrir para pagamento aos aposentados e o limite
máximo de 60 euros nos caixas eletrônicos, impediram a quebra do país, muitas
vezes insinuadas e até estimuladas pela mídia corporativa, sempre a serviço de
seus patrões da Troika.
Por FC Leite Filho.