O ódio vítreo que se construiu
contra Vargas e JK é semelhante ao direcionado a Lula
A característica certamente
mais exemplar de nossa história é a conciliação. De cúpula sempre (ou seja,
conciliação em nome da preservação dos interesses da classe dominante),
impedindo a revolução (como tal entenda-se também a simples ameaça de
emergência das massas) e retardando as reformas das mais simples às mais
essenciais – todas, como meras reformas, pleiteadas conforme as regras do
regime que não visavam a altera.
Em todos os momentos graves, a
ruptura – ainda quando uma exigência histórica – cedeu espaço à concordata pois
o essencial foi sempre a conservação dos donos do poder no poder. Da Colônia ao
Império, do Império à República, e até aqui.
Mas a opção pela conciliação
não impediu que nossa história fosse, desde o Primeiro Reinado, juncada de
irrupções militares, às vezes quase só motins, como aqueles que precederam
(preparando-a) a Independência e a sucederam (consolidando-a), até a resignação
do Imperador, de malas prontas para o cerco do Porto e a revolução liberal que,
depondo d. Miguel, faria D. Maria, a rainha brasileira dos portugueses, subir
ao trono.
No Segundo Império a
preeminência militar senta praça após a infeliz guerra ao Paraguai, quando
nossas forças de terra e mar alcançam algum grau de organização e
profissionalismo/profissionalização e, animadas pelas penosas vitórias nos
campos de batalha, decidem exercer presença na política imperial.
Era propício o momento, com as
seguidas crises dos seguidos gabinetes, as campanhas abolicionista e
republicana e, no plano ideológico, o positivismo grassando na caserna e
conquistando a jovem oficialidade. Assim, na formação histórica brasileira,
temos duas linhas convergentes sob o fundo autoritário: a conciliação e a
insurgência militar.
Mas na altura do II Reinado
nada que sugerisse, nem de leve, o que seria a presença desestabilizadora dos
militares na República. Se o marco inaugural foi a ‘parada militar’ do 15 de
novembro, que derrubou o Império e viu a República consolidar-se com o golpe de
Floriano, o ciclo se fecha com a conjuração do golpe de 1º de abril de 1964,
que se afirmaria como uma ditadura de 20 anos.
Entre um polo e outro, de
intentonas e sublevações seria rico o primeiro terço do século: o levante do
Forte de Copacabana (1922), a insurgência paulista de Miguel Costa (1924) e a
coluna Prestes (1924-1927) caracterizaram a República Velha, que morreria em
1930 com a irrupção civil-militar que passaria à história como Revolução de 30,
hegemonizada pelos tenentes de 22 e 24, que comandariam as forças militares e
permaneceriam no proscênio da política até a ditadura de 1964: Eduardo Gomes,
Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel…
A revolução de 1930 – que
empossa Getúlio Vargas –, transforma-se na ditadura do Estado Novo em 1937,
após sufocar um putsch integralista (1932) e um levante de militares comunistas
comandados por Luís Carlos Prestes (1935). Os mesmos generais responsáveis pelo
golpe de 1937 (à frente de todos os generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar
Dutra) agora se levantam contra Vargas, e abrem caminho (1945) para a
restauração democrática.
Inicia-se com um general, o
ex-ministro da Guerra da ditadura, o general Dutra, o ciclo de presidentes
eleitos pelo voto popular e de regimes democráticos que os mesmos militares
sufocariam 18 anos passados.
Após uma sequência de golpes
militares e tentativas de golpe – deposição e renúncia de Vargas (1954);
tentativa de impedimento da posse de JK-Jango e contragolpe militar de
Lott-Denis (1955), tentativa de impedir a posse de Jango (crise da renúncia de
Jânio Quadros) e golpe parlamentarista (1961) – a estratégia da preeminência
militar abandona as intentonas e as irrupções, para exercer um efetivo
superpoder, pairando acima dos três poderes constitucionais, regendo a
República sem depender da soberania popular ou submeter-se a qualquer
regramento.
Foi o largo período dos
pronunciamentos militares manifestando-se sobre a vida civil e interferindo na
política. Naquele então o Clube Militar era uma instância suprema, na qual os
destinos do País eram decididos. Naquele então, os militares se pronunciavam
sobre tudo, até sobre os índices do salário-mínimo, e podiam exigir e obter a
demissão do ministro do Trabalho que ousava favorecer os interesses dos
trabalhadores.
Momento dos mais
significativos dessa preeminência – ou do exercício desse poder
para-constitucional –, seria observado, no regime democrático, em 1954, com a
‘República do Galeão’, anunciando o que seriam os tempos da ditadura de
1964-1984.
Os fatos estão no registro da
história. Em agosto de 1954, uma desastrada tentativa de assassinato de um
jornalista (Carlos Lacerda) termina com a morte de seu guarda-costas, um major
da aeronáutica (Rubens Vaz), da ativa, o que enseja a brigadeiros e coronéis da
FAB instalarem um IPM – à revelia da Polícia Civil – e, sob o pretexto das
investigações desse crime, instaurarem o que ficou batizado como a ‘República
do Galeão’, em homenagem ao aeroporto carioca em cujas instalações militares os
coronéis operavam, à margem da ordem legal.
E assim sem leis a observar,
desconhecendo limites a obedecer, o comandante do inquérito, ou presidente
dessa República auto-constituída dentro da República constitucional, tornou-se
um reizinho absoluto, porque tudo podia, todas as diligências, todas as
prisões, senhor que era de todas as jurisdições. Porque tinha o respaldo de
seus superiores – fortalecidos em face da fragilidade crescente do governo e de
seu chefe – e o aplauso da grande imprensa, que o incentivava.
Tudo queria, tudo podia e tudo
alcançava porque seu objetivo, o objetivo do IPM e da ‘República’, não era
apurar a morte do major guarda-costas, mas atingir, como afinal atingiria
mortalmente, a honra do presidente Getúlio Vargas, alvo da mais injuriosa, da
mais violenta campanha de imprensa jamais movida no Brasil contra um chefe de
Estado.
A infâmia, a injúria e a
difamação não conheciam limites, invadindo mesmo sua privacidade e a intimidade
de sua família. Vargas, o homem, o presidente, o líder de massas era o objetivo
da imprensa unanimemente hostil, a serviço da direita derrotada com sua eleição
em 1950.
Destruí-lo era o desejo de uma
oposição desvairada, era o projeto de militares sublevados e de setores
ponderáveis da classe-média, conquistados para a razzia antivarguista pelas
denúncias, jamais comprovadas, de um ‘mar de lama’ que correria pelos
inexistentes porões do discreto e quase ascético Palácio do Catete.
Enterrado Vargas, empossados
Café Filho (presidente), Eduardo Gomes (ministro da Aeronáutica) e Juarez
Távora (ministro chefe da Casa Militar), encerraram-se os inquéritos e nem os
militares, nem a imprensa, nem a antiga oposição voltam a falar em corrupção.
Em 1964, retornam os IPMs, os
inquéritos comandados por coronéis, e a caça às bruxas, primeiro
indiscriminadamente, em seguida de forma metódica, com alvo preciso, o ex-presidente
Juscelino Kubitscheck. Mas aí era um regime de exceção, uma ditadura.
Os inimigos do novo regime
foram transformados, uns (pessoas e entidades, como os sindicatos) em
subversivos, outros em corruptos, e porque eram inimigos do regime eram, necessariamente,
aos olhos deste, subversivos ou corruptos. Antes de acusados eram condenados,
pois a acusação era a justificativa da condenação prévia, e os acusados eram
presos para que seus crimes fossem apurados, apurados para justificarem a
condenação e a pena, já imputadas.
Juscelino era, nos primeiros
anos do golpe militar, o único líder civil do regime anterior politicamente
sobrevivente. Jango, Brizola e Arraes amargavam o exílio. Torna-se, assim, JK,
o inimigo a ser abatido. Como não poderia ser acusado de subversivo, foi
condenado como corrupto, pela imprensa e pelos militares, a imprensa repetindo
o ditado dos militares, embora nada tivesse sido ou fosse apurado contra ele.
Condenado, foi chamado a depor
duas ou mais vezes em inquéritos militares (pois a pena decretada era sua
desmoralização pública) até que, ameaçado, temendo maiores humilhações e mesmo
temendo por sua integridade física, optou pelo exílio. Os militares não falaram
mais nos inquéritos abertos e a imprensa o ignorou até ser obrigada a registrar
o pranto nacional em sua trágica morte.
A história não se repete, mas
saltam aos olhos as semelhanças entre o ódio vítreo que se construiu contra
Vargas e JK e este que a imprensa brasileira, quase em uníssono, destila,
alimenta e propaga contra o ex-presidente Lula, açulando, não mais as Forças
Armadas como antes, mas agora agentes policiais sem comando, procuradores sem
limites e juiz na presidência de inédita jurisdição nacional.
A história não se repete. Mas
o ex-presidente Lula já foi chamado a depor, na Polícia Federal, umas duas ou
três vezes, e agora é intimado, com a mulher, a depor em inquérito aberto pelo
Ministério Público paulista. Precisa explicar porque desistiu da compra de um
tríplex em Guarujá e porque visitava um sítio em Atibaia, e porque incentivou a
indústria automobilística quando o País precisava criar empregos.
Condenado sem sursis como
corrupto pela imprensa – como Vargas e JK –, exposto à execração pública,
decaído em seu prestígio, como agora, Lula – e eis o que se pretende – estará
afastado das eleições de 2018, seja como candidato, seja como grande eleitor.
Condenação decretada, pena
anunciada, procura-se uma narrativa: eis o propósito, a finalidade dos
inquéritos abertos e a serem abertos. Trata-se de destruir o último grande
líder popular brasileiro. E isso vale, aos olhos de seus algozes, todo e
qualquer preço.
A burguesia regurgita o sapo
barbudo que as massas a fizeram engolir nas últimas eleições.
Por Roberto Amaral.