Em 1947, a Palestina, então ocupada por 600 mil judeus e 1,3
milhão de árabes (dos quais cerca de 700 mil palestinos foram expulsos), seria
partilhada para que ali se instalassem dois Estados, um judeu (o futuro Estado
de Israel) e outro árabe. O primeiro se estabeleceu, e sabe-se o que é ele
hoje. O outro, passados 78 anos, aguarda o reconhecimento internacional que lhe
é negado. Lideram a recusa os EUA e sua coorte:
Reino Unido, Alemanha e a maioria da União Europeia. Israel ocupa e
bloqueia os territórios palestinos da Cisjordânia, de Jerusalém Oriental e de
Gaza, onde deita e rola desde a invasão de 1967, no curso da “Guerra dos Seis
Dias”.
Os palestinos de Gaza são um povo cativo em país ocupado
para ser destruído, hermeticamente bloqueado, privado de combustível,
eletricidade, água, alimentos e remédios, com sua infraestrutura civil
destruída, as escolas postas abaixo, e os hospitais à mercê dos bombardeios. As
estimativas falam em algo como 35 e 45 mil vítimas civis. Mais de 15 mil
crianças já morreram, e a ONU adverte que outras, mais de 15 ml bebês, ainda
podem morrer se o governo de Israel continuar bloqueando a entrada de alimentos
e remédios. A propósito, o insuspeitíssimo Estadão (29/5/25), claramente
vinculado aos interesses da direita internacional, reproduz matéria de agência
de notícias estrangeira sob o seguinte título: “Palestinos famintos invadem
centro de distribuição de comida”. Abaixo estampa foto de multidão de jovens e
velhos, todos famélicos, disputando uma cuia de farinha ou um naco de pão.
Enquanto a comunidade internacional se omite, e o sionismo
aplaude os crimes de guerra, Ehud Olmert, ex-primeiro ministro de Israel
(2006-2009), define a política sionista como “perversa, maliciosa e
irresponsável”. É preciso ouvi-lo:
“Netanyahu, tipicamente, tenta obscurecer o tipo de ordens
que vem dando, a fim de se esquivar de responsabilidade legal e criminal no
devido tempo. Mas alguns de seus lacaios dizem isso abertamente: ‘Sim, vamos
matar Gaza de fome’”. Acusa: “Israel está cometendo crimes de guerra”.
Ehud Olmert certamente identifica como lacaios do genocida
personagens como o ex-ministro e ex-deputado e líder direitista Moshe Feiglin,
fundador do Zehut. Vejamos o que declarou em entrevista ao Canal 14, da
televisão israelense:
“Toda criança, todo bebê em gaza é um inimigo. O inimigo não
é o Hamas, nem a ala militar do Hamas. Toda criança em Gaza é um inimigo. Temos
que conquistar Gaza e colonizá-la e não deixar uma só criança lá. E não há
outra vitória”.
O conteúdo do áudio foi registrado pelo The Guardian e
correu o mundo, sem, contudo, despertar o menor interesse da grande imprensa
brasileira.
Ao contrário dos nazistas, que tentavam esconder o
holocausto, o genocídio levado a cabo contra os palestinos é escancarado,
exposto ao mundo, tonitruado e exaltado pelos dirigentes de Israel e dos EUA, a
potência imperial que lhes fornece apoio político, econômico, militar e
logístico. Ao contrário do povo alemão, que alegava desconhecer os consabidos
crimes do nazismo, a população de Israel aplaude o genocídio.
Segundo pesquisa encomendada pela Penn State University, e
analisada por Tamir Sorek, “82% dos judeus-israelenses apoiam a limpeza étnica
de Gaza, enquanto 56% apoiam a expulsão de palestinos com cidadania israelense,
comumente designados pelo léxico colonial como árabes-israelenses, e 47%
concordam com a matança de palestinos em áreas conquistadas por Israel”. A
visão fundamentalista, messiânica e supremacista, todavia, não muda, quando,
diz a pesquisa, é ouvido o público secular: “69% dos secularistas apoiam a
expulsão forçada dos moradores de Gaza, e 31% deles veem o extermínio dos
moradores de Jericó como um precedente que as Forças de Defesa de Israel (IDF,
na sigla em inglês) deveriam adotar.”
Os últimos acontecimentos, porém, e o temor de que a
barbárie sionista torne impossível o retorno dos reféns ainda nas mãos do
Hamas, podem mudar o quadro interno. Registram-se as primeiras reações
populares contra os reiterados crimes de guerra do Estado sionista.
Manifestações de protestos surgem em várias capitais europeias.
A tudo o que se sabe e não se pode mais ignorar, a imprensa
maistream batiza de “a guerra de Gaza”, como se estivéssemos em face do
confronto entre dois exércitos. Assim participa da “guerra”, manipulando a
informação, uma de suas frentes mais importantes. Ecoa a narrativa ideológica
que interessa a sionismo, e ainda distorce ao reiterar que as ações militares
têm os guerrilheiros do Hamas como alvo, quando qualquer análise fria põe a nu
que o objeto dos massacres é uma hedionda limpeza étnica. É preciso denunciar e
repetir à exaustão.
Agências internacionais, em meados deste maio, estimavam
algo entre 35 e 40 mil como o número de vítimas civis fatais em Gaza. Ainda é
impossível calcular o número de feridos e mutilados e invalidados. Mas já se
pode dizer que todos perderam seus bens e a cidade foi reduzida a nada. Onde já
se comemorou a vida, onde um dia foi possível acreditar no futuro, apostar no
sonho de um novo lar, o sionismo construiu um grande túmulo; nele se misturam
vidas mortas e ruínas. Os palestinos amargam a angústia de não saberem até
quando estarão vivos.
Nosso silêncio, nossa inação, como povo, como sociedade,
como agentes políticos, o silêncio de nossas organizações, a apatia da
academia, o sono dos sindicatos, a miséria de nossos partidos, nossa pobreza
revolucionária, nosso recuo diante do establishment serão registrados pela
História como cumplicidade moral.
Do nosso governo é justo esperar algo mais que a justa
retórica.
A miséria nazista, que atingiu de forma bruta e até então
impensável os judeus, os comunistas, os progressistas e o pensamento de
esquerda de um modo geral, os homossexuais, os ciganos, os doentes mentais, os
dissidentes – a miséria dos crimes de guerra cometidos na Segunda Guerra –, foi
condenada tanto pela indignação ética do mundo que então se recompunha, quanto
pelo direito internacional, erguido pelo poder vencedor dos aliados. O direito
carece da força para se impor. Quase
todos os criminosos de guerra do Eixo (afora os que se suicidaram, como Hitler)
foram julgados e condenados pelo Tribunal de Nurenberg. Ocorre que os
criminosos de hoje são os que controlam a força que controla o direito.
Os crimes de guerra dos EUA no Vietnã foram julgados pelo
Tribunal Russell. Na altura, era o máximo possível diante da potência
guerreira. Não implicou consequências objetivas, não evitou novas invasões, nem
novas ocupações, nem novos crimes de guerra, mas, pelo menos, pode-se dizer que
nossa consciência crítica, com aquele gesto de notável carga simbólica, rompeu
com a inércia moral, e, não podendo intervir no processo histórico, deixamos
nosso testemunho. A posteridade julgará os omissos.
Desprotegida do que ainda chamamos de civilização, que dela
se apartou, Gaza, vazia e morta, logo se transformará na formosa Riviera dos
sonhos imobiliários de Trump. Suas praias, nas margens orientais do Mar Negro,
hoje interditadas, em breve estarão liberadas. Bem guardadas, serão desfrutadas
por brancos europeus, norte-americanos e israelenses endinheirados, livres de
palestinos e dos pobres de um modo geral. Não será ainda o grande sonho, mas
pode ser a nano sugestão de uma terra prometida.
***
A miséria nossa de cada dia I – Se a sociedade se cala, o
Senado Federal altera a voz. No último 20 de maio a chamada Câmara Alta
aprovou, por injustificável unanimidade, isto é, com os votos dos partidos
conhecidos como progressistas, projeto de lei que institui o dia 12 de abril
como o “Dia da Amizade Brasil-Israel”, que nunca esteve tão rala como agora. E
esmerou-se na escolha do pior momento, exatamente quando o Estado sionista
intensifica o genocídio de que é vítima o povo palestino. Resta saber se o presidente
da República terá força política para vetá-lo. Abraços ao sempre mestre Paulo
Sérgio Pinheiro, que nos honrou com seu protesto.
A miséria nossa de cada dia II - O Senado se esmera no
esforço por autodesqualificar-se. Isso não é bom para a República, nem muito
menos para a democracia, fundada na representação popular. No dia 27 de maio, a
ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, compareceu à Comissão de
Infraestrutura para discorrer sobre “a criação de unidade de conservação
marinha na margem equatorial do Amapá”. Abordou o tema requerido, mas por ele
não se interessaram os senadores. Isso não lhes dizia respeito: o convite se convertera
em mero despiste para uma cilada. Ao invés de debater com a Ministra, os
senadores, agindo como coletivo, partiram para o ataque gratuito, e a
agrediram, no limite da ofensa física. Abusaram dos gritos, da tentativa de
desconstituição política e pessoal, abusaram dos insultos, mesmo daqueles
descabidos em roda de bar de beira de estrada. Abusaram da prepotência
machista, da misoginia, do racismo e da exposição dos preconceitos os mais
repugnantes. Exaltaram-se na defesa lobista dos negócios de empreiteiras, dos
capitães de motoserra e dos interesses inconfessáveis, mas conhecidos, que se
levantam contra a proteção do meio-ambiente, que, ao fim e ao cabo, é a defesa
da vida. A comissão saiu-se mal, os senadores saíram-se mal (todos, os
grosseirões e os que fugiram da defesa da ministra), mas ela saiu-se muito bem,
fez-se forte ante os que queriam enfraquecê-la; saiu limpa e digna como entrou.
Fico de pé para aplaudir Marina Silva.
Enfim, há o que saudar – Em meio a tanto mal-estar, em meio
ao choro de saudade de tanta gente que partiu aumentando nosso vazio, há uma
alegria por festejar: os prêmios de Kleber Mendonça e Wagner Moura, dois
intelectuais comprometidos com a construção de uma nova ordem social.
Por: Roberto Amaral.
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