É tempo de viver a folia. Mas por que não pensar também na organização da folia? No que acontece com as diversas camadas da população? No tipo de participação que o carnaval possibilita? Na utilização do espaço público? Sei que quando se toca no assunto, sempre há a reação: isso é papo dos conservadores, dos que não acompanham as inevitáveis mudanças. Mas quero ousar discutir, para além das reações. Ou até para que elas venham e a discussão se estabeleça, se é que se estabelecerá. Porque no mais das vezes o que se quer é o silêncio diante de assuntos explosivos. Especialmente quando o tema envolve negócios, e bons negócios.
Meu amigo Antonio Risério, há poucos dias, tratou da vida em condomínios. Da recusa da vida na cidade. Do apartheid que vai se estabelecendo sem que as pessoas se apercebam de que com isso o direito à cidade está sendo fraudado. Nessas pequenas comunidades isoladas, para citar apenas um aspecto, nossas crianças vão se formando sem a multiplicidade de convivências que o mundo urbano pode propiciar. A vizinhança se restringe àquelas poucas pessoas do meu condomínio. Risério tratou do assunto bem, e eu me intrometo de passagem para elogiar o tratamento que ele deu e para tratar de outra espécie de apartheid.
São vários os apartheids originados da organização do carnaval em Salvador nos últimos anos. Passa ano, vem ano e eles só se agravam. Discuto isso desde o início de 2000. Falo sempre dos cordeiros - que nome, hein? - submetidos a um regime de trabalho semi-escravo, negros convertidos em guardiães dos brancos bem nascidos protegidos por cordas, as cordas que eles sustentam, afastando a multidão ignara que os pressiona de fora. A multidão a que eles pertencem. Tem havido esforços para regulamentar a atividade, especialmente com a intervenção, nesse caso apropriada, do Ministério Público. Não muda, no entanto, o apartheid. De um lado a multidão de fora das cordas. De outro, os que pagam proteção e brincam no interior das cordas.
Muitos dos que brincam dentro das cordas nunca saem dali. Há turistas que chegam aos hotéis, embarcam nos ônibus, descem protegidos por seguranças, entram nas cordas, e dali voltam para suas camas, sem sequer interagir com Salvador, com a complexidade da cidade. Com esse tipo de organização do espaço, com privilégio para tais blocos, o chamado folião pipoca é obviamente marginalizado. Tem, mais do que nunca, que buscar seu espaço a cotoveladas, contra as cordas, contra a óbvia privatização do espaço que deveria ser de todos, e cada vez menos é de todos. Ainda bem que o governo do Estado tem dado força ao Programa Ouro Negro, valorizando os blocos de matriz africana.
A outra praga - me desculpem a expressão - é a dos camarotes. Outro óbvio apartheid. Aqui se pretende, quem sabe, organizar o carnaval espetáculo. Uma platéia seleta que vê o trio passar, e que bebe, e que come, e que paga, e paga alto, para fruir o espetáculo. E aqui há a clara, claríssima pretensão de distinguir-se da multidão, de não se misturar com o povo, de afastar-se dos odores, suores, transpirações, pega-pega das multidões, dos pobres que se embriagam metafórica ou verdadeiramente com a beleza do carnaval, mesmo que lhe tentem subtrair espaço de todas as maneiras. De certa maneira, que me desculpem novamente por essa outra expressão que pode parecer ofensiva, voltamos à famosa luta de classes.
Nada de misturas. Elas são inconvenientes. Os palácios se reproduzem em ambientes cinematográficos, devidamente aromatizados, a depender do gosto do freguês, o ar condicionado evitando ou minimizando o suor. E lá embaixo, sim, porque a multidão fica lá embaixo, os pobres pulam, e se divertem, e se envolvem numa alegria extraordinária, apesar de tudo, e ainda bem que seja assim, que tenhamos um povo com tanta capacidade para fruir a vida, mesmo que lhe roubem o espaço público, espaço que deveria ser inteiramente dele. Eu torço para que um dia no carnaval da Bahia as cordas sejam abolidas, as praças e as ruas sejam do povo, não haja embaixo e em cima, e que as multidões sejam as donas da cidade nos dias da festa.
Emiliano José.