Na madrugada desta última terça-feira, 26 de janeiro de 2016, o sol dava apenas os seus primeiros sinais de luz e o sono e os sonhos de cerca de uma dúzia de jovens adolescentes - a maioria entre 12 e 14 anos de idade - são cortados abrupta e cruelmente por chutes, tapas, gritos e xingamentos, por um grupo de policiais militares, fardados, herdeiros da truculência dos violadores da democracia no período da Ditadura Militar no Brasil. A mesma violência que há 43 anos matou, sob tortura, num quartel do Exército de Goiânia, um outro jovem - Ismael Silva de Jesus, 18 anos, cujo nome foi dado à escola desses que apanharam hoje, por exercerem também o mesmo direito de sonhar e de lutar por seus sonhos.
Ha cerca de 40 dias, esses meninos e meninas ocuparam o Colégio Estadual Ismael Silva de Jesus, no Bairro da Vitória, na periferia Noroeste de Goiânia - uma das áreas mais populosas e mais pobres da capital do Estado de Goiás.
Eles repetem aqui no Cerrado um movimento de resgate da cidadania dos jovens estudantes que começou na quase quinhentoscentona cidade de São Paulo, impedindo que o governo daquele estado implantasse um novo e não discutido projeto de educação, que previa o fechamento de centenas de escolas em todo o Estado. Aqui em Goiânia, no Bairro da Vitória, os novos líderes, que nasciam como os verdadeiros "políticos-jardineiros" descritos por Rubem Alves em seu texto "Sobre Política e Jardinagem, foram tratados com a mesma desumanidade que, em 1972, fez sucumbir o menino-mártir Ismael Silva de Jesus.
Há exatos 30 dias, esses mesmos meninos sequer sabiam a história do outro jovem que dera sua vida pela democracia e o seu nome para o colégio que então ocupavam, para resistir às não discutidas, mas fartamente publicitadas nas telas das TVs, tentativas do Governo de Goiás de iniciar um processo de semi-privatização da educação. Sem qualquer discussão do projeto com a comunidade - professores, alunos e pais - , ele pretende passar a administração das escolas estaduais de Goiás a uma empresa privada (OS), sem nem mesmo concorrência pública e escolhendo para isso uma empresa sem qualquer experiência em administração escolar, mas de máquinas gráficas. Pela primeira vez em suas vidas, falando comigo - jornalista, escritora e membro da Comissão da Verdade Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas de Goiás e da Rede Brasil, Memória, Verdade e Justiça - esses meninos e meninas ouviram alguém falar-lhes sobre a história de Ismael Silva, que tem o nome de sua escola; pela primeira vez eles souberam das torturas praticadas contra milhares de brasileiros - a maioria estudantes como eles -, tão somente porque aqueles, assim como eles, queriam participar da escrita de sua própria história.
Quem era Ismael de Jesus?
"Ismael Silva de Jesus era um jovem quase como vocês aqui. Ele tinha apenas 18 anos de idade, quando foi preso e torturado até a sua morte, no dia 19 de agosto de 1972. Ele era um menino que sonhava com um Brasil melhor para todos, que defendia a liberdade, a justiça, a volta da democracia, o direito dos brasileiros se reunirem, de cantar, de sonhar com um amanhã com mais felicidade para todos. Ele não era um terrorista. Era apenas um menino sonhador, corajoso e indignado com o projeto de país que os militares e as elites políticas empresariais, incluindo os donos das emissoras de rádio, TV e jornais, estavam implantando no Brasil há oito anos, então. Por isso, ele se filiou a um partido que na época tinha sido colocado na clandestinidade - o Partido Comunista Brasileiro. E o seu crime era ser o responsável pelo empréstimos de livros aos demais companheiros: ele era o bibliotecário do PCB."
- Por que O Ismael não falava o que eles queriam e parava com a tortura?- perguntou-me ingenuamente um deles, de apenas 12 anos de idade, carinha limpa e cabelo bem penteado.
- Porque somente os fracos ou os covardes, entregam os seus companheiros - respondi-lhe.
- Como "entregavam"? - continuou na sua ignorância da história política do seu país, do seu Estado, da sua cidade e do seu colégio.
- Quando uma pessoa presa falava os nomes de seus companheiros, eles estava denunciando eles, confirmando que os conheciam e que eram comunistas. E naquela época da Ditadura, os comunistas era todos presos, muitos deles seqüestrados, torturados e muitos morreram sob tortura. Por isso, para sua segurança, todos eles escolhiam um codinome, um apelido, para ser chamado no partido. O Ismael, por exemplo, era chamado de Olavo. Ele foi preso e muito torturado, pra que dissesse os nomes das pessoas para quem eles emprestava livros. Esse foi o seu crime. E por causa disso ele morreu. Com o corpo marcado pelas manchas da tortura, um olho furado e unhas arrancadas seu corpo foi entregue à família, com um Atestado de Óbito informando que ele havia "suicidado".
"O meu marido, que também era jornalista como eu, também estava preso no mesmo quartel que o Ismael. Numa cela vizinha à sua. E ele foi uma testemunha auditiva da agonia de morte de Ismael. E então, ele fez a si mesmo uma promessa: "No dia que eu tiver meu primeiro filho, ele vai se chamar Olavo, para continuar a sua luta que foi interrompida, companheiro!" E assim aconteceu. Nosso filho mais velho tem o nome de Olavo e, inclusive, aprendeu a andar correndo pelos corredores das cadeias em que o pai dele esteve preso por três vezes, nessa época do terrorismo instalado no Brasil pelo próprio governo federal: a Ditadura Militar. E, por isso, eu estou hoje muito emocionada de estar aqui com vocês. Agora, é a vez de vocês assumirem a construção de sua própria história. E vocês estão fazendo isso muito bem. Parabéns!"
Assim eu fui falando, rápida, mas suavemente, com aqueles jovens da Escola Estadual Ismael Silva de Jesus, que há duas semanas a haviam ocupado, tentando chamar a atenção do Governo do Estado, do PSDB, como se a gritar: "Olha aqui! Nós não somos invisíveis! Também queremos participar da discussão do nosso futuro, queremos participar da construção da nossa história!" Eram só meninos e meninas de sorriso fácil, de muitas perguntas, ingenuidade e coragem. Tudo estava extremamente limpo, inclusive eles. "Aqui não se entram drogas. Nem cigarros!" - dizia um cartaz grande escrito por eles, logo à entrada. Terminado o bate-papo, todos sentados em roda e falando um por vez, ofereceram-me um café coado na hora e um pão com manteiga que eu mesma lhes havia levado, junto com outros pacotes de macarrão, sucos, material de limpeza etc.
O Governo de Goiás entrou com uma ação na Justiça, pedindo a reintegração da posse e não a obteve. A Justiça entendeu que os meninos e meninas tinham direito de ocupar sua escola e discutir com o Governo o seu futuro. Mas hoje de manhã, me vem a notícia do absurdo! Esses jovens Ismael/Olavo, que apenas começam a tomar consciência da sua cidadania, ao invés de serem estimulados a se desenvolverem mais, sendo respeitados e ouvidos, esto sendo espancados, pisoteados, agredidos, xingados como se fossem o lixo do lixo não reciclado. Quando estive lá, não imaginava que a história pudesse ser repetida. Agora, todos eles são também vítimas da truculência que a Ditadura deixou de herança à Polícia Militar, criada naquela época.
Os novos Ismael-Olavo:
Meu corpo, minhas regras!
Pela Internet, recebi várias mensagens narrando as atrocidades cometidas pela polícia: "Hoje cedo, eu acordei, era umas 6 horas da manhã. Policiais entraram, ficaram me chutando… Chutaram o meu colega que estava do lado, no quarto. Me xingaram de cadela, vadia, vagabunda… Pegaram os nossos cadernos, colchões, mochilas - nossas coisas - e foram jogando no chão. Um soldado furou o pneu da minha bicicleta que tava no quarto, mandando a gente sair. Uma amiga levou uma cadeira nas costas, um outro também. Tá todo mundo cheio de manchas roxas…" Depoimento de uma menina de 14 anos de idade, aluna do Colégio Estadual Ismael Silva de Jesus.
"Eu acordei com os polícia dando tapa na cara, cadeirada nas costas minha e dos meus amigos, xingando nós.. E bateram muito. Eu tô com roxo na perna, no rosto…" - conta outro aluno, com cara e corpo magricela de dez, mas dizendo ter 12 anos de idade.
"E eu fui uma das mais agredidas porque estava com essa tatuagem na perna. Sendo que isso não tinha nada a ver. Nem minha mãe brigou por causa disso. E outra: Meu corpo, minhas regras!" - diz a mocinha mostrando uma tatuagem de figura feminina na sua perna fina, enquanto morde um sanduíche de pão com mortadela.
Pouco depois, chega pelo Whatsapp outro emocionado relato de uma historiadora de apenas 27 anos - Mariana Barbosa - apoiadora do Movimento dos Estudantes Secundaristas:
"Escrevo esse relato aos prantos, como, aliás, estive em boa parte do dia de hoje. Escrevo porque acho que todos devem saber o que está acontecendo no Estado de Goiás, escrevo por proteção, já que a perseguição começa a se instaurar, escrevo para tentar aliviar a dor de ver aquelas crianças espancadas.
"Às 07:00 da manhã recebi o relato de estudantes do Colégio Estadual Ismael Silva de Jesus de que a polícia havia entrado na escola às 05:40, quebrado várias coisas lá dentro, agredido vários deles e saído. Logo em seguida, chegaram várias pessoas da comunidade e um carro de som que já começava a anunciar as matrículas na escola. As pessoas da comunidade entraram no colégio e agrediram mais ainda essas crianças e as expulsaram de lá. Eles permaneceram na porta, abraçados, resistindo à todas essas agressões.
"Quando cheguei ao colégio já tinha um advogado do movimento lá e alguns outros apoiadores, que estavam tentando acalmar os meninos, comprando lanche para eles e ajudando a pegarem seus colchões e mochilas para levarem para outra escola. Havia também duas viaturas da PM na porta, algumas pessoas da comunidade (bastante agressivas), o diretor e o sub-secretário de Educação.
"Conseguiram um frete e colocaram todos os colchões, mochilas e objetos pessoais deles na caçamba de uma pampa. Saímos em comboio para levar esses objetos para uma outra escola e depois levar os meninos ao Ministério Público para denunciar as agressões. Éramos três carros: o do frete, o de um professor e o que eu estava. Ao passarmos por uma rua um pouco mais afastada da escola e bem vazia, nossos carros foram fechados por mais três carros, sem nenhum tipo de identificação policial, nem nos veículos e muito menos uniformes ou distintivos nos policiais.
"Fecharam a gente, saíram de seus carros com arma na mão mandando a gente descer e colocar a mão na cabeça. Assim fizemos. Nos trataram com muita truculência. Gritaram com as crianças, não nos deixaram pegar nossos celulares para avisar o advogado, revistaram os carros, revistaram nossas bolsas, jogaram as cosias dos meninos no asfalto. Depois, tiraram todos os colchões do frete, revistaram todas as mochilas que estavam lá dentro (e nem eram dos estudantes que estavam conosco), fizeram perguntas intimidatórias e ameaçaram: disseram que houve denúncia de furto e depredação da escola e que seríamos acusados por isso.
"Mas não encontraram nada! O que tinha lá eram esses objetos! O que fomos fazer lá foi ajudar essas crianças e adolescentes, que haviam apanhado, a fazerem uma denúncia, a levar quem precisasse no hospital e a levar suas coisas a uma outra escola. Como não tinham encontrado nada, perguntamos se então estávamos liberados. Eles disseram que estávamos convidados a irmos à delegacia. Perguntamos se podíamos não aceitar o convite e responderam que se nos negássemos a ir, PODERÍAMOS SER ENCAMINHADOS A FORÇA, e nesse momento um deles retirou algumas algemas do bolso.
"Fomos então, acompanhando os carros dos policiais para o 22º CIOPS, no Jardim Curitiba. Lá pegaram nossos nomes completos, endereços e telefones e nos entregaram mandados de intimação para prestarmos depoimentos nos dias 02 e 03 de fevereiro. Detalhe: os menores também receberam intimações! Saindo da delegacia, um pouco mais tarde, orientados pelos advogados, fomos finalmente ao Ministério Público onde as crianças e adolescentes relataram sobre as agressões que sofreram e posteriormente foram encaminhados para o IML para fazer exames de corpo de delito. Apresentamos também a denúncia da abordagem que nos fizeram.
"Estamos mobilizando todo tipo de apoio neste momento. As perseguições políticas começaram com o claro intuito de criminalizar apoiadores maiores de idade. Mas vão criminalizar o quê? Criminalizar pessoas que iam às ocupações diariamente levar comida, cozinhar, fazer oficinas? Que crime podem me acusar? De ter ido ao Ismael e em tantas outras escolas discutir com as meninas sobre violência contra a mulher? De ter feito comida pra eles vários dias e levado doações que recolhíamos de diversos apoiadores espalhados na cidade? De oferecer ajuda quando apanharam? De dar uma carona ao Ministério Público?
"Confesso que ainda estou muito chocada com tudo o que aconteceu, estou profundamente triste e assustada. Espancar crianças é muito baixo, é muito cruel. Mas o que tem me dado força é a solidariedade de pessoas não só daqui, mas do Brasil inteiro que já estão se mobilizando, porque lutar pela educação não é crime! Porém, sobretudo, e desde o começo, o que me emociona e dá forças, mesmo, é ver a garra dessas crianças e adolescentes, que têm tocado essa luta histórica em Goiás, passando por todo tipo de problemas nas ocupações e agora por mais isso, mas ainda assim permanecem firmes e nos ensinam, diariamente, tanta coisa bonita que nos traz de volta a esperança."
No início da noite ainda da terça-feira, chegam mais notícias por telefone, whatsapp e outras redes sociais, dando conta de que os estudantes haviam ocupado a sede da Secretária de Estado da Educacão e que a situação era perigosa. Lá dentro, uma meia centena de estudantes, lá fora uma centena e mais de policias. A tensão era grande e a possibilidade de mais violências também. E, para denegrir ainda mais a imagem do governo do Estado, o próprio subsecretário de Educação, o mesmo que esteve nas escolas "desocupadas", junto com os policiais, entrou no prédio, se trancou numa sala e se auto-proclamou seqüestrado. As notas na Internet mostravam imagens, visitas de autoridades e até de um diretor da OAB-Goiás, deixando clara a ridícula tentativa do subsecretário de Educação de Goiás de ludibriar e deseducar a população, criando uma situação fraudulenta.
Em Goiânia, hoje à noite, não teve chuvas ou trovoadas. É uma noite escura, calorenta e pachorrenta. Tomara Deus que não se copiem os militares nos anos de chumbo e que não transformem as trevas desta noite de 26 para 27 de janeiro de 2016 em novas nódoas na nossa história política! Ditadura, nunca mais!
* Laurenice Noleto Alves - Nonô Noleto - DRT-GO 191
Jornalista, 67 anos, aposentada, escritora e artesã licoreira
Diretora de Eventos do Sindicato dos Jornalistas de Goiás
Membro da Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de Goiás
Membro da Rede Brasil, Verdade e Justiça
Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste de Goiás