Há um eixo comum em atitudes tão estapafúrdias como a
nomeação de um filho inexperiente e de posições sabidamente extremadas para ser
embaixador nos Estados Unidos, a exaltação da posse de armas pela população
“para impedir um golpe”, a intenção de extinguir órgãos de apoio à cultura (ou,
alternativamente, a censura dos projetos), a decretação do fim das demarcações
indígenas e áreas quilombolas e os ataques constantes a homossexuais e outras
minorias. Tudo isso acompanhado por posicionamentos em organismos internacionais
que se afastam da linha tradicional (e constitucional) de respeito aos direitos
humanos e a autodeterminação, entre outros.
Há quem ache que esse comportamento exótico e chocante, que
já nos levou à beira de uma guerra, é mera cortina de fumaça para distrair a
atenção da aprovação de medidas impopulares, como a reforma da Previdência, ou
antinacionais, como a venda da Embraer à Boeing e a dilapidação do patrimônio
público na área energética.
Não concordo.
Mesmo reconhecendo que os gestos que beiram o surrealismo –
um surrealismo sombrio e, por vezes, assustador – podem desviar a atenção de
medidas estruturais de efeito deletério para a economia e o bem-estar da
população, não subestimo o valor (no caso, obviamente, valor negativo) de
declarações e atos cujo objetivo principal é atacar as bases de uma sociedade
laica, tolerante, minimamente solidária e, na teoria ao menos, respeitadora da
razão e da ciência.
Os ataques aos valores que, até aqui, com todas as
limitações, orientaram a nossa vida política desde a redemocratização não são
gratuitos. Nem são mera distração. Eles têm impacto direto na realidade,
condicionando atitudes e liberando ódios que, de outra forma, permaneceriam
dormentes ou reprimidos. Ao colocarem a ignorância acima do conhecimento, o
egoísmo no lugar da solidariedade e – por que não? – a morte acima da vida,
esses ataques penetram no imaginário coletivo e são fundamentais para alcançar
o objetivo proclamado de “destruir tudo o que está aí”.
Duas leituras recentes reforçaram minha convicção e
aumentaram minha inquietação. Uma delas tem a ver com as declarações racistas
do presidente Donald Trump, dirigidas contra quatro parlamentares mulheres. Em
artigo divulgado pelo site da Brookings, conceituado think tank norte-americano,
o pesquisador Andre M. Perry (ele próprio afrodescendente) analisa como
declarações e conceitos emitidos por autoridades tiveram, ao longo da história,
impacto sobre a situação dos negros, reforçando posturas racistas.
Quando um presidente participa de uma “marcha com Jesus”
simulando com a mão estar portando uma arma é o próprio sentido do cristianismo
que é distorcido. Violência e religião misturam-se de forma perigosa no
imaginário coletivo. Cria-se o quadro para impulsionar mudanças legislativas, que
promovem o descrédito do Estado como provedor de segurança e a ideia de que a
defesa e a justiça devem ser obtidas por meios próprios.
Talvez para escapar um pouco da nossa triste realidade,
estive imerso, por alguns dias, na leitura de um livro de autoria de Sarah
Bakewell, intitulado No Café dos Existencialistas. O capítulo sobre Martin
Heidegger – que viria a filiar-se, por algum tempo, ao partido de Hitler – me
trouxe de volta, abruptamente, à situação que estamos vivendo. Atenho-me a duas
ou três passagens, referentes ao início dos anos 30. Comentando a sensação de
“estranheza” do próprio Heidegger, diz a autora: “Os mais cultos foram por
vezes os menos inclinados a tomar os nazistas a sério, considerando que eram
muito absurdos para durar”. Para Bakewell, muitos agiam como se acreditassem
que a barbárie não pudesse ficar um longo tempo no poder.
Outro comentário chamou minha atenção. Em 1935, quando as
nuvens sombrias se acumulavam de modo indisfarçável sobre a Alemanha, o
filósofo Edmond Husserl alertou para a crise que ameaçava a tradição europeia
de apreço pela razão e pela ciência. Em uma palestra em Viena, o pensador
sugeriu que os universitários devem se unir para resistir à “derrapada em
direção a um misticismo perigoso e irracional”. Sempre segundo a autora,
Husserl conclamou a um “heroísmo da razão”, como única esperança da Europa.
Em um “país demente”, para usar a expressão de Mino Carta,
essa conclamação soa terrivelmente atual. Para evitar uma derrapada de
consequências catastróficas em direção à loucura, será necessário unir forças –
na universidade e para além dela – de modo a preservar o discurso racional, sem
o qual a política inevitavelmente desemboca na tirania, desde sempre
considerada a forma mais insana de governo.
Por Celso Amorim.
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