Em tempos de jornalismo de guerra, nem a ABI e seu presidente são poupados. (Por Ernesto Marques)


Ainda na primeira "varredura" pelas notícias do dia, comecei pelo Estadão e me deparei com a seguinte manchete no alto da página de abertura da edição digital: "Petista omitiu da ABI  que aluguel de auditório era para evento com Dilma". Era fim da madrugada e eu poderia estar vendo coisas (postagem foi à 5h45). Esfreguei os olhos e apurei a visão, mas era isso mesmo. 
O link era da Coluna do Estadão, assinada por Andreza Matias e Marcelo de Moraes. O assunto estava na cabeça da coluna, com direito a foto de Dilma Rousseff e três notas que reproduzo a seguir:

"Surpresa!

A diretoria da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) foi surpreendida ontem ao saber que havia alugado o auditório da sua sede para evento que teria como estrela a ex-presidente Dilma Rousseff e como tema "um ano do golpe"."Pedalada

O presidente da ABI, Domingos Meirelles, disse à Coluna que os contratantes do evento não o informaram do que se tratava. "Deveriam ter nos avisado. Em nenhum momento se identificaram. Estou perplexo", conta.

"É cash

O aluguel do auditório foi pago em dinheiro vivo pelo deputado Wadih Damous (PT-RJ), que desembolsou R$ 4 mil. "Não me lembro como paguei e o fiz porque é um ato do meu mandato", explicou."

Ainda incrédulo, procurei o jornalista Fábio Costa Pinto, que representa a Associação Brasileira na Bahia, onde existe uma ABI Bahiana com "h" - não se trata de seccional. Ele também estranhou o fato e precisei enviar-lhe o link para, vendo, crer. "A casa não tem lado. Nós não assinamos o pedido contra Dilma nem o Temer. O nosso posicionamento será diante da verdade apurada na hora certa. Não vamos entrar nessa Ernesto. O espaço é para todos." De fato, essa é a postura da Associação Brasileira de Imprensa desde sempre, até na ditadura, e não só essa postura da instituição, mas a própria memória de Barbosa Lima Sobrinho deve ser respeitada, porque altiva e sempre corajosa.

Fábio acionou Domingos Meirelles, que prontamente respondeu: "Não deu para ler toda a matéria do Estadão. Ligaram para mim da redação e perguntaram se o evento fora organizado pela ABI . Respondi que o Auditório tinha sido alugado para uma reunião sindical . Só na véspera é que tomamos conhecimento , por acaso , de que se tratava de um encontro com a Dilma promovido pelo PT.  Expliquei que a tradição da ABI é de acolher democraticamente todas as correntes de pensamento sem fazer distinção de credo político ou religioso.  Foi o que de fato aconteceu. Nada mais do que isso." Como se vê, bem diferente das declarações atribuídas a ele pelos colegas da Coluna do Estadão.

Enquanto conversava por mensagens com Costa Pinto e ele com Meirelles, tiraram o destaque da capa da versão online do velho jornal, aguçando a minha curiosidade sobre o impresso. Como documento, o suporte em papel sempre terá valor porque não se muda o publicado e distribuído. Comentei da minha expectative de uma posição da ABI e do seu presidente sobre o caso. 
Conversei com Domingos Meirelles e ele me confirmou desconhecer, de fato, o conteúdo do evento até pelo fato de a ABI não fazer qualquer tipo de filtro religioso ou político para alugar seus auditórios. Lamentou inclusive por não ter tido tempo de preparar a casa para receber uma ex-presidente como manda o protocolo. "Nem pude estender o tapete vermelho e forrar as poltronas, como sempre fazemos", disse o presidente.

Se não foi rompida uma tradição da Casa fundada em 1908, tanto a abordagem ao jornalista Domingos Meirelles, quanto a edição da sua fala aos colegas colunistas, merecem reflexão. Nessa hipótese, muito mais de pedir (ou exigir) o devido reparo, faria bem à Associação Brasileira de Imprensa ocupar seu auditório para dissecar o momento atual do jornalismo brasileiro a partir deste episódio. Ocupar com os trabalhadores da notícia, como se definia o saudoso Perseu Abramo, dublê de jornalista e político, assim como Barbosa Lima Sobrinho. Não para fazer manifestação, mas para pensar criticamente sobre o momento vivido pelo país, a contribuição das empresas de mídia no rumo dos acontecimentos e o papel a ser desempenhado por jornalistas no cotidiano das redações. Se o jornalismo de guerra não poupa sequer a ABI e seu presidente, constrangendo-os, como se apanhados em malfeitos, talvez restem-nos ainda menos esperanças de superar a crise nauseante em que mergulhou o Brasil.

Um jornal conservador, como o vetusto Estado de São Paulo, vulgo Estadão, não surpreende em suas posições conservadoras desde sempre. Surpreendente é ver um jornal tão importante sem seus donos-jornalistas no comando, subalterno a uma comissão de investidores/credores - banqueiros. É o mesmo processo de necrose em vida por que passa A Tarde. Quando a "banca" está no comando, às favas os preceitos da boa prática do jornalismo. 

Por Ernesto Marques é jornalista, radialista e está vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa.

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