Naquele ano nós já tínhamos
decidido que o negócio na escola seria estudar e nada de brincadeiras ou algo
que viesse a nos desviar dos estudos. E assim entramos na sala de aula.
Normalmente sentávamos nas cadeiras do fundo da sala. Não foi diferente naquele
dia. Cada um foi se sentando perto de quem já conhecia e tinha um pouco de
afinidade. A surpresa foi ver aquela garota entre nós. Era o primeiro ano dela
ali. Talvez não conhecesse a turma do fundão.
Enquanto a professora começava
a escrever seu nome, informar que matéria iria lecionar, Roberto não tirava os
olhos daquela branca ao nosso lado. Na verdade, nem ele, nem eu e nem os
outros. Ela era como uma gata tomando banho em uma bacia com água. Algo
improvável de se ver, mas que estava li.
Logo, Maria foi se enturmando
com todos. De sorriso fácil. Onde íamos, ela estava colada. Como toda turma de
escola, é no intervalo que as coisas mais acontecem entre os amigos. Acho que
foi em algum desses momentos que percebi que o Roberto não tirava os olhos
dela. Ele estava encantado por aquela menina linda. Não só ele a olhava. Todos
da sala tinham um olhar diferenciado para ela. Os garotos das outras turmas
também. Mas ela estava sempre entre nós. E não dava nenhuma ousadia a ninguém.
Roberto, um negro, sofria
mangação constante de todos. Uma hora era o seu cabelo, outras a sua cor e até
seu jeito de falar, era motivo para uma “brincadeira”. Ele nunca demonstrou
ficar chateado com aquilo. Eu nuca soube se ele tinha se acostumado ou sofria e
ria para não demostrar a sua dor.
Maria não gostava do que
fazíamos com ele. Muitas das vezes ela levantou a voz dizendo que as palavras o
machucava. Ele nunca disse nada. Mas desde que ela se juntou a turma, eu
percebi que algo nele mudou. Quando ela o defendia, ele ficava calado a
olhando. As brincadeiras já não tinham graça para Roberto. E Maria, ao
defender, chamava a sua atenção.
Um certo dia, na fila do
lanche, fizeram uma brincadeira pesada com ele. Mangaram de sua calça que
estava “sajada” na bunda. Ele ficou tão sem graça que saiu correndo. Maria foi
atrás dele. Mas antes, disse umas verdades a todos.
- Vocês acham que brincar, rir
de uma pessoa os tornam amigos dela? Estão erradas. Isto só os torna pior que
ela. Tenho vergonha do que vocês se tornaram hoje.
O silêncio se abateu entre a
turma. E ela foi ao encontro dele. Não retornaram mais as aulas naquele dia.
Lembro que alguém veio buscar seus cadernos na sala.
Do dia seguinte em diante, os
dois se tornaram inseparáveis. Continuaram andando conosco, mas estavam sempre
um ao lado do outro. E mesmo todos tendo pedido desculpas, perdão pelo que
fizemos, ela se tornou a escudeira dele. Daquele dia em diante, ninguém tirou
mais nenhuma brincadeira com Roberto que remetesse a sua cor. Bastava uma
menção sobre outra pessoa que fosse, para o olhar de Maria repreender a pessoa
que fizera.
Eles foram ficando tão
inseparáveis que o “improvável” aconteceu. Cláudio entrou na sala naquela
segunda-feira, chamou o grupo no fundo da sala para ninguém mais ouvir o que
ele tinha a dizer e anunciou:
- Eu acabei de ver, Roberto e
Maria se beijando atrás da escola.
Ninguém parece ter acreditado
no que acabará de ouvir. Todos saímos correndo em direção ao local para ver a
sena, se verdade fosse, que poderia ainda estar acontecendo. Ao virarmos a
esquina da escola, encontramos os dois sentados, um ao lado do outro. Não tinha
beijo, não estavam de mãos juntas. Nem juntinhos estavam. Mas tinha algo ali
que era diferente de só amizade.
Daquele dia em diante, víamos
os dois ainda mais juntos. Quando estavam conosco, já víamos suas mãos juntas.
Os carinhos, antes de amizade, foram ficando mais intensos. Aconteceram tão naturalmente
que não chamaram tanta a nossa atenção para o fato de ele ser negro e ela ser
branca cor de leite e cabelos loiros.
Mas aquele casal não era bem
visto na escola. Descobertos por todos, começaram a ser apontados como uma
atração. E no pior dos sentidos. A diretora mandou chamar os dois e avisou que
era proibido o namoro entre estudantes na escola. Ela só esqueceu de chamar
todos os outros casais “normais” para dar a mesma lição de moral neles.
Maria e Roberto, mesmo com a
ameaça de que a história dos dois fosse denunciada a seus pais, não mudaram um
só instante nos seus comportamentos. Ele até demostrou preocupação com ela. Ela
nunca teve medo de enfrentar a sociedade e seus pais. E assim fez. Antes mesmo
que a diretora convocasse seus pais, ela contou a eles o que estava se
passando.
Roberto, mesmo com seus
dezesseis anos e Maria com seus quinze anos, enfrentaram tudo de frente. Ele
começou a frequentar a casa dela. Teria sido um pedido dos pais dela. Eles
apoiaram a filha, mas mostraram a ela o quanto o amor que ela dizia sentir por
Roberto a iria machucar. Aquela garota, sabe-se lá o porquê, amou aquele negro,
não por sua cor, mas pelo que ele era para ela.
Já se fazem 37 anos desde
aquele ano na escola. No mês passado eu os encontrei na feira. Estavam, como
sempre, juntinhos. Tinham conseguido passar por todos os problemas que uma
relação como a deles pode causar. Conseguiram ultrapassar todos estes anos
enfrentando todos os tipos de comentários que um negro e uma branca casados
ainda podem causar na sociedade. Me falaram que tem um casal de filhos. Que os
dois também estudaram na mesma escola que nós. Que são felizes juntos.
E eu percebi, que mais do que
a cor do ser humano, o amor entre duas pessoas pode romper todas as barreiras
sociais existentes. Aquele casal de amigos é um exemplo de que, não tem classe
social, não tem condições financeiras, não tem cor nem pedras no caminham que
não possam ser removidas quando existe amor entre duas pessoas.
Eu tenho certeza, que a
história dos dois, me tornou uma pessoa melhor.
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