Ao ler o título deste pequeno texto, muita gente deve estar
se perguntando do que se trata esse tal de arrego. Explico: arrego é a taxa
semanal que Batalhões da PM cobram para o tráfico das favelas locais
funcionarem livremente. E o que acontece quando os traficantes decidem não
pagar o arrego? A polícia invade a favela. Matando. Não só traficantes, mas
quem estiver pela frente. A multa pelo atraso do arrego é o sangue da favela. E
como a mídia costuma noticiar esse tipo de operação? Como uma operação que visa
combater o tráfico. E é assim que a população que mora fora da favela enxerga
esse tipo de conflito. Só que isso não tem absolutamente nada a ver com combate
ao tráfico, muito pelo contrário: é um confronto para controlar o tráfico.
Falsa guerra.
Esticando um pouco a análise, tem mais uma coisa importante
que a gente precisa compreender: no Rio, há várias facções criminosas, com
estratégias e comportamentos diferentes. Algumas delas são amigas da polícia e
evitam o confronto com policiais (uma dessas, inclusive, se chama “amigo dos
amigos – ADA, o nome já diz tudo). São, basicamente, sócias da PM.
Há uma outra facção, o famoso Comando Vermelho (CV), que não
gosta muito de negociar com a policia e prefere manter o domínio dos seus
territórios na base do confronto, da guerra. Essa facção é historicamente mais
hostil à negociação. Sendo assim, nas áreas de domínio do CV, costumam ocorrer
frequentes confrontos com a PM. Percebam que esse tipo de confronto, entre
Polícia e CV, não se dá porque a polícia está tentando neutralizar o tráfico,
mas sim - repito - pelo controle do tráfico. Tem algumas peculiaridades nessas
regiões que valem à pena serem citadas aqui: em muitos desses confrontos, a PM
apreende armas, drogas e traficantes. Boa parte das armas e drogas são
revendidas para facções amigas e uma pequena parte apresentada na delegacia
para justificar a operação. Dizem que cada fuzil é revendido por mais de 50 mil
Reais. E o que eles fazem com os traficantes presos? Muitas vezes, dependendo
da relevância do criminoso, entram em contato com a facção e cobram uma espécie
de resgate. Outras vezes, eles simplesmente matam o traficante e ficam com todo
o ouro que o cara carrega consigo (policiais costumam chamar isso de prêmio de
guerra). Mais um detalhe: por que que vocês acham que traficante anda com tanto
ouro no corpo? Isso mesmo, para caso seja pego, consiga abrir uma negociação em
troca do que carrega no corpo.
Além dos confrontos e negociatas acima, ainda há a guerra
entre facções. uma guerra que é muito interessante para os grandes traficantes
de arma e para os vendedores do varejo. Vocês já estão imaginando um pouco do
que é a vida na favela, né? É, isso mesmo, um inferno.
Por fim, na última década, tivemos o surgimento de uma
terceira facção para jogar mais gasolina no incêndio: as milícias.
E como é o funcionamento das milícias? Seria justo chamá-las
de facções criminosas?
Respondendo à primeira questão, basicamente, são facções
formada por policiais militares e civis, agentes penitenciários, bombeiros e
ex-militares. Quanto à segunda questão, obviamente, são grupos criminosos que
se formaram para disputar território com as tradicionais facções que comandam o
tráfico de drogas. Acontece que as milícias são facções que vão para além do
simples comércio de drogas. Eles transformam os territórios conquistados em
verdadeiros Estados paralelos. Controlam e monopolizam a venda de água e gás
nas regiões dominadas. Mandam no transporte coletivo ilegal. Detêm o monopólio
do fornecimento de serviços de TV a cabo e internet. Cobram pesados impostos
dos comerciantes e, por fim, aqui talvez um dos pontos menos explicitados pela
grande mídia, formam currais eleitorais nas regiões que dominam. Isso quer
dizer que só faz campanha eleitoral nas comunidades sob controle da milícia os
políticos que possuem ligação com o crime organizado. Percebam a gravidade e a
ameaça à democracia que essa facção nos traz. Inclusive, muitos dos
parlamentares cariocas são eleitos por milicianos. Outros tantos no parlamento
declaram apoio quase que explícito às milícias. Um exemplo de apoio parlamentar
ao crime organizado é a atuação da família Bolsonaro: um dos integrantes do
clã, o Deputado Estadual Flávio Bolsonaro, além de ter votado contra a CPI
destinada a investigar o crime organizado por milicianos no Rio de Janeiro,
chegou a defender, pasmem, a legalização das facções criminosas organizadas por
milicianos. A situação é extremamente crítica e quem se coloca no caminho
destes esquemas corre o risco de perder a própria vida. A democracia está sob
ameaça.
A nossa Marielle ousou desmascarar todo o esquema acima. Foi
uma guerreira que conhecia de perto tudo que está escrito no texto -- e muito
mais. Uma mulher negra, cria da favela que, com muito esforço, se graduou em
sociologia na PUC-RJ e se tornou Mestra em Administração Pública pela UFF.
Lutou e estudou para transformar a vida da favela. Denunciou a falsa guerra.
Não se calou. Foi eleita a quinta Vereadora mais votada da cidade. Foi a voz da
favela. Uma voz que não irá se calar.
Marielle, iremos defender seu legado e preservar sua
memória.
Por David Duccache.
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