Aproveitemos o sacrifício
involuntário e inesperado de Marielle para refletirmos sobre a tragédia que é a
política fluminense.
O Brasil desmoraliza o
impossível: a tragédia nacional se agrava dia a dia, abarcando todos os setores
da vida nacional, esgarçando o tecido social, trabalhado pela violência
indiscriminada e pela intolerância estimulada, em níveis jamais conhecidos em
nossa História.
É a mais grave crise da vida
republicana que, no passado, por diversas vezes, foi espaço de rupturas
constitucionais, violação de direitos e retrocessos políticos, sempre em
prejuízo dos trabalhadores e dos mais pobres.
Essa crise de nossos dias,
cuja profundidade, violência e gravidade a cortina de um legalismo autoritário
tenta escamotear, deita sua peçonha sobre todos os poderes constitucionais,
tornados ilegítimos e inconfiáveis, abrindo caminho para a crise institucional
já visível à luz do dia.
É este um balanço do regime
derivado do golpe de Estado de 2016, e ele exige das forças populares
vigilância e ação (organização e mobilização) em defesa da ordem democrática.
Nada obstante suas limitações de hoje, a aliança de forças que tomou de assalto
o poder investe na fragilização do processo democrático e não titubeará em
decepar o processo eleitoral se a oportunidade se oferecer, se a correlação de
forças revelar-se favorável
A classe dominante brasileira
é despida de escrúpulos, e sem pruridos morais pode transitar do legalismo mais
estrito ao golpismo mais deslavado. Não nos esqueçamos de que o golpe de 1º de
abril de 1964 tinha como uma de suas bandeiras mais caras, aquela que mais
falava aos corações dos liberais, a defesa da Constituição e da democracia – as
primeiras vítimas da ordem ditatorial-militar.
Jamais tivemos um presidente
de República tão repudiado pela opinião pública. Sua ‘gestão’ é
considerada regular, ruim e péssima por
89% da população (Estadão, 19/03/2018). Jamais tivemos um governo tão inepto,
tão antinacional, tão anti-povo.
A alma, o espírito, o corpo, a
desqualificação moral de nosso Legislativo foram eviscerados pelo espetáculo
grotesco daquela sessão de 17 de abril de 2016. Nada de sério ou de honroso nos
é dado esperar dessa Casa de negócios, por mais que lá resista um minoria
estatisticamente irrelevante em face da maioria ilegítima e corrupta,
desvinculada de pudores ou comprometimento cívico.
Mas o Poder Judiciário, sócio
do golpe de 2016, como fôra do golpe de 1964, como fôra do golpe parlamentar de
1961, sócio do autoritarismo e expressão ativa dos interesses da casa-grande,
tem superado todos os limites da auto-degradação.
Quando seus príncipes e suas
princesas, habitantes do topo da pirâmide social, faziam greve (juízes fazendo
greve!) por penduricalhos salariais como o ilegal e imoral ‘auxílio-moradia’,
no Rio de Janeiro, sob intervenção
federal das Forças Armadas, reduzidas ao papel de polícia, mais um crime do
atual governo federal, eram executados a vereadora Marielle Franco e seu
motorista Anderson Pedro Gomes, no centro da capital fluminense, nas barbas dos
militares.
É sintoma do Judiciário que
temos, de sua qualificação moral e ética, de sua furiosa noção de classe, de
seu reacionarismo e irracionalismo, de sua sesquipedal incultura, a declaração
expelida sobre o crime pela desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, que
já ofendera Zumbi dos Palmares e o deputado Jean Wyllys, que desejaria ver fuzilado. Gostaríamos de crer na sua
excepcionalidade, mas tememos estar diante de uma visão-paradigma.
O governo federal humilhou o
Rio de Janeiro com a intervenção descabida e inócua (como advertia o resultado
pífio de suas antecessoras), mas sua principal vítima foram as Forças Armadas
que erraram ao aceitarem o papel de joguete mercadológico-eleitoral de um
presidente acossado pela impopularidade e pelos inquéritos que apuram sua participação em conhecidas falcatruas, muitas
das quais remontam ao seu reinado no Porto de Santos.
A execução que abateu tão cedo a vida de uma
notável líder social (que jamais será suficientemente pranteada) consistiu,
muito provavelmente, em tresloucada provocação da banda podre das
polícias-milícias contra a intervenção que, por inexperiência de seu comando,
anunciou o propósito de saneá-las, quando deveria fazê-lo sem aviso prévio.
Seja qual tenha sido a
motivação, uma bofetada na dignidade dos cidadãos, nada diminui a torpeza e
iniquidade do crime político, cujos mentores e mandantes, tanto quanto ou mesmo
mais que seus executantes, precisam ser identificados, se a casa-grande não
deseja institucionalizar a lei da selva que já impera – governando como se um
Estado autônomo fosse – nas periferias pobres de nosso país.
O crime põe em xeque o caráter
da intervenção e nos adverte para o calamitoso desastre que poderá ser o saldo
da ação das Forças Armadas (doloroso também para elas), em missão para a qual
não se destinam e muito menos estão qualificadas. Por isso, sem forçosa relação
de causalidade, o crime e a intervenção estão de mãos dadas.
Celso Amorim, ex-Ministro da
Defesa, aponta para o âmago da tragédia: “(…) a filosofia que inspirou a
intervenção foi o que induziu ao assassinato de Marielle, seja por priorizar a
repressão violenta nas comunidades pobres, seja por levar setores policiais ou
das milícias ou do tráfico a colocar a autoridade interventora frente a um
desafio aberto.
Como no episódio do Riocentro,
já lembrado por Tereza Cruvinel, entre outros comentaristas, a responsabilidade
pelo crime recai sobre aqueles que escolheram a via da violência como meio de,
supostamente, garantir a segurança da população” (“Carta aberta às forças
progressistas do Estado do Rio de Janeiro”).
Além do mais, como é óbvio,
como é sabido por todo o mundo, inclusive pelos serviços de inteligência das
Forças, o monitor da violência não está nas favelas cariocas ou paulistas, ou
cearenses, nem será combatido com a invasão civil ou militar, morro acima,
atemorizando ainda mais seus moradores, trabalhadores já acossados por
policiais, milicianos e bandidos. A violência que explode nos morros e já desce
para o asfalto tem origem no narcotráfico, do qual os facínoras de pés
descalços são meros varejistas.
Ou há alguém neste mundo, além
de Pedro Bó, que acredite na falácia segundo a qual é essa gente quem negocia
com o tráfico internacional, que fornece as armas e a droga que aqui faz escala
na sua viagem para os EUA e a Europa? Cumpram com exação as Forças Armadas e a
silente Polícia Federal (nesse imbróglio, o que é que ela tem a dizer?) o seu
papel de vigilância de nossas fronteiras, e não mais ingressarão em nosso
território nem as armas nem a droga. Feche a Marinha de Guerra a baía de
Guanabara, a grande porta de entrada do contrabando, e as fontes dos varejistas
secarão.
E tenhamos, afinal, a coragem
de rever uma legislação retrógrada, caduca, que fomenta o círculo vicioso
repressão-contrabando-repressão que enriquece contrabandistas e policiais
desonestos, espalhando a corrupção até níveis inusitados do poder público e da
política – como nos lembra o papel da
Lei Seca nos EUA (1920-1933), alimentando a máfia, com as consequências que a
literatura e o cinema notabilizaram.
É sempre oportuno lembrar: a violência
nos morros, massacrando sua gente, aquela que poderíamos chamar de endógena,
tem origem nas miseráveis condições de vida de suas populações, de que se
aproveitam o tráfico e as milícias para, através do medo, dominar territórios,
impor a barbárie no lugar da lei, beneficiados pelo ativo comprometimento de
chefias políticas e dos ‘arranjos’ eleitorais.
Para esse fim, ações pontuais,
cosméticas, que só valem para fornecer imagem para as televisões, de nada
servem. Serve a intervenção maciça de recursos públicos, intervindo nas periferias como nos bairros da
zona sul do Rio, com saneamento básico, urbanização, escola e educação;
mediante uma política de desenvolvimento que combata o desemprego e a miséria,
a matéria-prima que alimenta o tráfico, a violência e o crime.
De igual modo é fundamental um policiamento compatível com a
cidadania, que privilegie a inteligência em detrimento da força bruta, evitando
lançar combustível em fogueira e preservando a vida dos moradores e dos próprios
policiais, que não podem continuar condicionados a agir como bestas-feras,
servindo de capitães-do-mato e buchas de canhão.
O golpe teve sucesso e, pior,
se mantém ágil na sua faina por destruir o que de mais caro possui uma nação, a
esperança de seu povo.
É da essência do projeto
político a intencionalidade, a vontade, a busca de um determinado fim, a
seleção de meios. Isso nos diz que planejamento e ação políticas não casam com
a expectativa do acaso.
Por exemplo: condicionar o
futuro de uma causa ao resultado de um julgamento judiciário, ou seja, ao acaso
de uma decisão favorável, é renunciar ao papel de sujeito no processo
histórico. Mas se o aleatório é uma condição possível, cabe ao estrategista
trabalhar com o não-planejado e usar sua energia, sua força – e até as emoções
que de acordo com suas características pode desencadear – em benefício do
projeto político, que, em seu proveito, tudo deve atrair.
Aproveitemos o sacrifício
involuntário e inesperado de Marielle, e a profunda dor que essa perda nos
causa, para refletirmos sobre essa outra tragédia que é a política fluminense,
a chamar as forças populares e de esquerda para a unidade.
Precisamos, hoje mais que
nunca, ingressar na idade da razão.
Roberto Amaral - escritor e ex-ministro
de Ciência e Tecnologia.
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