O fato de as eleições estarem previstas não significa
necessariamente que elas venham a ser realizadas
“O Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil” - General Braga Netto.
Estamos a sete meses das eleições de 2018, quando o povo
escolherá (deverá escolher) seu presidente, todos os governadores de Estado,
todas as assembleias legislativas, toda a Câmara dos Deputados e dois terços do
Senado Federal. Tratam-se, portanto, de eleições quase-gerais. No entanto ainda
são desconhecidas as regras jurídicas do pleito e, no plano federal, não são
conhecidos os candidatos, à direita – que não se entende – e à esquerda, pois
sobre a candidatura Lula – aquela da preferência do eleitorado – há,
ameaçando-a, a espada de Dâmocles da especiosa vedação já anunciada pelos
tribunais.
Uma vez mais – como em 1955 contra a chapa Juscelino
Kubitschek-João Goulart, trata-se de transferir para um Judiciário
partidarizado a decisão que a democracia representativa só reconhece como legítima
quando decorre da vontade da soberania popular, expressa mediante o voto.
É essa a regra do conservadorismo: rejeitado pelo voto
popular, como foi em 2014, apela para a exceção do golpe de Estado
(1954,1961,1964 e 2016), que compreende tanto a intervenção militar ostensiva
quanto a violência parlamentar, de que servem de exemplos os golpes de 1961
(emenda parlamentarista) e de 2016 (deposição de Dilma Rousseff, que se
complementa com a interdição, por um Poder Judiciário comprometido, da
candidatura Lula).
Ocorre que, se a virtual cassação da candidatura do
ex-presidente (hoje candidato preferencial de 40% do eleitorado nacional) abala
as pretensões das forças progressistas e nacionalistas, é de igual evidência
que ela não resolve o drama da direita. Esta permanece sem opção eleitoral,
assim como estava em 1955, sem condições de enfrentar as candidaturas de
Juscelino e Jango, os representantes das forças político-ideológicas que haviam
sido defenestradas com o golpe de Estado civil-militar que se concluiu em 1954
com o suicídio de Vargas.
Isabel Lustosa, historiadora de primeira água, argui,
preocupada, a similitude do quadro de hoje com aquele de 1937, cuja culminância
foi a imposição da ditadura do Estado Novo, que se estenderia até 1945.
Naquele então, ademais das condições internacionais
favoráveis aos governos autoritários e fascistas às vésperas da Segunda Guerra
Mundial, o que se colocava era a assunção, ao arrepio das regras da democracia
representativa, de uma liderança popular (Vargas) imbuída de um projeto
nacional de desenvolvimento autônomo. No caso presente, porém, trata-se da
prorrogação de um governo ilegítimo, rejeitado pela população, descomprometido
com a soberania, a democracia e o desenvolvimento, e até aqui nominalmente chefiado
por um político menor.
O liame entre 1937 e nossos dias, reforçando as preocupações
da historiadora, é a regência Trump cuja truculência, que certamente serve de
alento ao reacionarismo de nossas forças internas, derrotadas em 1985, mas não
conformadas com o império da democracia representativa. Pois a administração
Trump acaba de ressuscitar a “Doutrina Monroe” mediante a qual os EUA, já em
1823, anunciavam seu mando político e militar sobre a América Latina, sob cuja
ordem patrocinaram um sem número de intervenções militares no Hemisfério, sob a
justificativa ora de defesa dos interesses de empresas norte-americanas aqui
instaladas, ora sob o pretexto de combate ao comunismo.
Sobre os projetos do Pentágono relativamente à politica
brasileira de nossos dias é elucidativo o discurso de Rex Tillerson, secretário
de Estado, em campanha preparatória da intervenção militar na Venezuela, citado
por Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington: “Tínhamos esquecido
a importância da Doutrina Monroe e o que ela significou para o Hemisfério”
(‘Ressuscitando a Doutrina Monroe’, Estadão, 27.2.2018).
Quem tiver barba que a ponha de molho.
Não conhecemos razões objetivas que indiquem a conformidade
da súcia governante em face das regras da democracia fundada na liberdade e na
soberania do voto. Nossas classes dominantes, forâneas e alienadas, jamais
relutaram em decepar a ordem democrática sempre que a consideraram incômoda aos
seus projetos de lucro e poder.
Para fraturar a democracia, essa direita, mãe da gangue
governante, não tem hesitado, com o concurso dos meios de comunicação de massa
– entre nós um monopólio ideológico da direita – em lançar mão, ora do combate
à corrupção (de que, porém, é partícipe a classe dominante, via empresariado),
ora do apelo à lei e à ordem, que tanto sensibiliza as forças armadas que, para
esse efeito, não refugam mesmo o papel de polícia, invadindo morros, após haver
clamorosamente fracassado na repressão, de seu ofício, ao contrabando de armas
e de drogas, incapazes que se mostraram na vigilância de nossas fronteiras. Eis
a essência da intervenção do Exército na segurança no Rio de Janeiro.
A ‘intervenção militar’ na segurança do Rio de Janeiro – e
por quê só nela, se o descalabro é administrativo ? – nesses termos, carrega
consigo a suspeita de uma operação a) puramente politico-mercadológica ou b) um
ensaio de operação militar que pode ser repetida e, mesmo, ampliada
territorialmente.
Que significa a declaração do general-interventor que abre
este artigo como sua epígrafe?
A melhor hipótese de justificativa para a injustificável
“intervenção” no Rio de Janeiro reside no seu caráter político, visando a
desviar as atenções da sociedade para o rotundo fracasso do governo na
imposição da reforma previdenciária. Com a ruína da reforma – a menina dos
olhos do “mercado” – o governo via
fugir-lhe uma das poucas razões de sua permanência no Planalto. Mas essa não é
a única explicação, pois é justo trabalhar com a perigosa hipótese de um
processo civil-militar que visa, em face do fracasso eleitoral anunciado, a
garantir a prorrogação do atual governo.
Várias são as alternativas cogitáveis e quase todas já foram
experimentadas em nossa história republicana. O expediente clássico das
irrupções militares e das quarteladas, tão nosso conhecido, parece despiciendo com a possibilidade dos
arranjos de cúpula (como se resolvem nossos impasses) como aquele que,
desrespeitando a vontade majoritária na nação, resolveu a crise de 1961 com a
imposição de um parlamentarismo de fancaria cuja única finalidade era surrupiar
os poderes constitucionais do presidente da República.
Uma vez mais coloca-se como prioridade para as forças
populares a questão democrática em todas as vertentes possíveis, mas
principalmente no que diz respeito ao processo eleitoral, sem o qual a
democracia representativa transforma-se em simulacro.
Lamentavelmente, o fato de as eleições estarem previstas não
significa necessariamente que elas venham a ser realizadas e, se realizadas,
venham a obedecer às regras constitucionais. A garantia das eleições e sua
conformidade com as regras da democracia representativa dependem da mobilização
popular, e não pode ser o pleito deste ou daquele partido, deste ou daquele
candidato, mas de todos os democratas, independentemente de seus projetos
eleitorais específicos.
Por todas essas razões é preciso festejar a iniciativa das
fundações dos principais partidos que ocupam o espaço situado à esquerda do
espectro político brasileiro, organizando-se em fórum e se pronunciando sobre a
conjuntura nacional. Ressalto, principalmente, a compreensão da preeminência da
questão democrática, que compreende a realização de eleições em 2018.
As fundações decidiram pelo lançamento de Manifesto
(‘Unidade para reconstruir o Brasil’) que proclama, como tarefas imediatas a)
“a restauração da democracia, do Estado democrático de direito, do equilíbrio
entre os poderes da República e 2) garantia da realização das eleições de 2018,
com pleno respeito à soberania popular; e não à proposta casuística do parlamentarismo
e do semipresidencialismo.
Esse encontro, das fundações, é um ponto de partida
significativo, por si mesmo, pela sua simples existência, e porque promete
hierarquizar as diferenças (que não podem ser substantivas) em proveito de um
projeto tentativamente comum de resistência, caminhando para a reconstrução do
país, nos termos, opção da esquerda brasileira, da ordem constitucional.
É preciso, porém, ter em conta, que as fundações –
importantes, institutos de pesquisa e formulação – não constituem instâncias
partidárias e essas ainda não se pronunciaram sobre a proposta coletiva de
projeto nacional. O selo das direções partidárias poderá constituir-se no fato
novo dessas eleições e da história das esquerdas brasileiras, descobrindo o bom
caminho das alianças programáticas.
Não se fala, nem falam as fundações, nem se está a cobrar
dos partidos, uma aliança eleitoral; trata-se de um primeiro compromisso
estratégico visando a unificar a mensagem das esquerdas, que, ademais,
precisarão compreender, talvez pela primeira vez, que o adversário
preferencial, mesmo no processo eleitoral, não é seu vizinho de margem, mas o
neoliberalismo e seus representantes.
O primeiro desdobramento do encontro das fundações deve ser
uma frente democrática aberta a todos aqueles – partidos, movimentos, associações,
personalidades – comprometidos com a preeminência da questão democrática, ponto
de partida sem o qual carecerá de sentido qualquer disputa eleitoral.
Outro ponto, para discussão adiante, é o processo eleitoral
(é preciso primeiro garanti-lo) e nele as disputas das siglas e suas
candidaturas, todas originalmente legítimas. Ora, sem eleições democráticas – a
prioridade das forças democráticas – esse debate cai no vazio.
Em momento de nuvens espessas o Barão de Itararé, filósofo
disfarçado de humorista, anunciou, relembrando Hamlet: “Entre o céu e a terra
há algo mais que os aviões de carreira”
Theotônio partiu
Chega-nos a notícia esperada, mas temida e dolorosa. Após
nove meses de uma sofrida luta contra a tragédia biológica, faleceu Theotônio
dos Santos, brasileiro dos melhores, um dos maiores economistas-políticos
brasileiros, pensador voltado para a economia latino-americana e um dos
principais formuladores da teoria da dependência.
Ele simboliza, quando menos, o seguinte: o Brasil não é uma
ilha, seus desafios não começam e terminam nele mesmo, e para superá-los é
fundamental olhar para o cenário global, sobretudo o contexto na América Latina
e do Hemisfério Sul, buscando expandir nossa compreensão e estabelecer alianças
que nos fortaleçam.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
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