Em certos momentos
tínhamos a sensação de tocar com as mãos o horizonte socialista, nossa utopia
de sempre, e ao mesmo tempo confiávamos no governo João Goulart, o que punha
rédeas em nosso deslumbramento revolucionário juvenil. Muitos achavam
inconcebível os velhos generais abrirem as portas do poder para sargentos,
políticos de esquerda, “empresários progressistas”, estudantes e camponeses sem
terra. Nossos ideólogos no PCB ensinavam que a primeira fase da revolução seria
em aliança com a burguesia nacional. Contava-se, de igual, com a estabilidade
do governo Jango, assentado em larga maioria no Congresso e festejado pelo
apoio popular, apesar da campanha ferrenha que lhe movia a grande imprensa,
sempre reacionária. E, sobretudo,
confiávamos na sua base de sustentação na caserna, que se dizia forte. Era o
tal do “dispositivo militar do general Assis Brasil”.
O país discutia as reformas de base, a plataforma-síntese de
nosso projeto e o divisor de águas da política. O país era uma só assembleia, e
discutia-se seu destino em auditórios por todo o país. Certamente alcançou-se,
naquela altura do século passado, o momento de maior nível de educação das
massas e organização popular. Eram os nossos anos dourados, após o sucesso de
JK; os anos do Cinema Novo, de Maria
Esther Bueno, nossa tenista campeã, do Brasil bicampeão mundial de futebol ao
lado do Brasil das ligas camponesas, da UNE, da Frente Parlamentar
Nacionalista, das centrais sindicais em ebulição e do crescimento do movimento
popular. Mesmo a Guerra Fria nos favorecia, e foi um marco a viagem de Iuri
Gagarin.
Mas a lua tem duas faces: nossos avanços eram acompanhados
pelo avanço dos centros da reação que se espalhavam Brasil afora, como o IBADE
(encarregado de financiar as candidaturas de direita nas eleições brasileiras)
e o IPES (formulador da doutrina golpista). Nas eleições de 1962 a direita
comprometida com o golpe havia eleito os governadores de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, o chamado centro dinâmico do país, aproximadamente 40%
da população e 60% da economia nacional.
A partir de 1963
sentíamos, sem clareza quanto ao significado, que algo impalpável se movia no
quadro tradicional da política brasileira: a rebelião dos sargentos em Brasília
e o motim dos marinheiros no Rio. Eram fatos bastante objetivos para serem
ignorados.
O recuo de Jango, retirando do Congresso o pedido de
decretação do estado de sítio, que dizia amparado no apoio dos ministros
militares e com o qual pretendia atingir o governador Carlos Lacerda, da
Guanabara, seu principal opositor, era evidente indicador de conflito no seu
núcleo mais íntimo: contra o estado de sítio moveram-se Arraes e Brizola, a
Frente Parlamentar Nacionalista, a UNE e as centrais sindicais.
Consolidava-se a ideia da iminência de um golpe, quando
sonhávamos com a revolução. No Rio, ex-vice-presidente da UNE, fui conversar
com José Serra, então presidente da entidade e quadro político influente. A
conversa confluiu para o plano nacional, e para o golpe, que não se
expunha, mas se sentia. Indagado sobre sua visão, o líder estudantil
que seria ministro de Estado no governo FHC e governador de São Paulo,
respondeu algo que ainda relembro, passados tantos anos: "- O golpe será
dado. A dúvida é simplesmente sobre a iniciativa, se da direta ou da esquerda”.
Voltaria a ver o Serra de longe, daí a poucos dias, discursando no palanque do comício de 13 de
março. Passadas dezenas de anos, nos reencontramos no Recife, no velório de
Miguel Arraes. Ele não se recordava do diálogo. Mas, de fato, a esquerda, ou
pelo menos setores da esquerda vinculados ao Partidão, já contavam com o golpe,
a nosso favor, mas comandado pelos generais, e cuidavam de tomar assento.
Estava na esquina o governo democrático-nacionalista e era a hora de negociar
sua composição. Algo como dois dias passados do encontro com Serra, deparo-me
com Antônio Carlos Peixoto, intelectual de primeira linha do PCB, assistente da
fração da UNE: nosso amigo Fco. Faria, vice-presidente, iria representar a
entidade em reunião que começaria a definir nosso futuro ministério. O Partidão
teria dois votos, o seu, da organização, e aquele que chegaria no galope da
entidade estudantil. O golpe não seria das Forças Armadas, nem contra o povo.
O comício da Central foi um marco e mudou muitas cabeças,
inclusive a minha. Antes reticente em relação às vias de conquista do poder,
passei a me incorporar ao contingente dos conquistados pela demonstração de
força para uma imediata e irresistível conquista do poder.
No dia 17 de março, havia o que comemorar. Era o aniversário
do Partidão (que desfrutava de plena liberdade e de uma legalidade fatual), e a
festa foi uma conferência de Prestes, nosso secretário-geral e líder quase
mítico. A “festa” foi no 9º andar da ABI, e constituiu de longa e didática
preleção sobre o processo social brasileiro e a presença dos militares em nossa
história. Relembro, de memória, três pontos que ainda hoje considero os de
maior relevo: I) os militares brasileiros eram oriundos da classe-média, e por
isso refletiam o sentimento nacional; II) as forças armadas eram legalistas e
democráticas, e, corolário, III) não havia o menor risco de golpe de Estado
militar. O que, dito pelo grande comandante, valia para nós como verdade
irrefutável. Saímos empolgados e fomos tomar chope no bar Vermelhinho, bem em
frente à ABI. No dia seguinte, Prestes repetiria sua pregação no grande comício
do Pacaembu, em São Paulo. A tradução de tudo isso foi a absoluta
desmobilização das forças populares.
Dois dias passados subíamos ao Nordeste, Marcos Lins,
dirigente da AP, eu e outro personagem
cuja imagem e nome a história e a memória não registraram. Marcos Lins levava
cartas para dois governadores da região, e eu para o governador Virgílio
Távora, do Ceará, com quem me encontrei logo na
noite de minha chegada. Por indicação do movimento sindical e partidos
de esquerda, eu exercia, a partir de
1963, uma assessoria política no gabinete do governador, quadro da UDN, amigo a
um só tempo de Jango (era o que se dizia) e do banqueiro Magalhães Pinto,
governador de Minas Gerais e figura das mais decisivas na maquinação do golpe -
que, não sabia Prestes e não sabíamos nós, logo
saltaria às ruas.
No dia seguinte, estou restabelecendo contatos e tentando
montar uma linha de informações, quando sou chamado ao gabinete do governador.
Quando entro em sua sala, ele está saindo deu uma pequena cabine que mandara
instalar, “para ter mais privacidade em suas ligações “com Brasília e Rio”.
Após os rápidos cumprimentos de praxe, dirige-se a mim: “- Doutorzinho (assim
ele identificava todos os colaboradores jovens), seu amigo Jango acaba de nos
foder: mexeu na única coisa em que não se mexe neste país, a hierarquia militar
(o governador se referia ao discurso do Presidente aos sargentos no Automóvel
Clube do Rio, na noite do dia 30/03). O golpe está dado e eu não posso fazer
nada por vocês Vou tentar salvar meu mandato. Saia daqui e vá avisar aos seus
amigos”.
Saí, atordoado. Mesmo assim falei com quem pude, saiu de
circulação quem pôde, mas não havia nenhuma retaguarda, nem opção tática:
estávamos preparados, política e estrategicamente, tão-só, para assumirmos a
direção revolucionária. Caminhávamos ou corríamos sem direção, como formigas
expulsas do formigueiro. E houve muita resistência, talvez de ordem mais
psicológica do que política, a aceitar a desagradável informação que eu levava.
Ela desmontava as fantasias de há pouco. Estávamos todos sem chão, e, pior de
tudo, sem saber o que fazer, sem ter a quem consultar. No auditório da Fênix
Caixeiral, no centro de Fortaleza, antigo e liberal estabelecimento de ensino
fundado por comerciários, sucediam-se discursos inflamados. O sentimento geral
era de um repeteco de agosto de 1961 e da resistência democrática. Mas não surgiu um novo governador Brizola,
não teve voz uma nova Campanha da Legalidade.
No dia seguinte dessa longa noite, chego cedo à Faculdade de
Direito e me dou com algo que semelhava uma festa. Os companheiros comemoravam
o levante do general Mourão, porque, diziam, era o que “o gal. Brasil esperava
para cortar a cabeça dos golpistas”. Achei mais prudente ir à casa do
governador. Era fundamental obter informações. Lá o encontrei pressionado por
uma delegação de empresários que cobravam uma declaração sua de apoio ao golpe
e promessa de repressão a qualquer agitação popular. Imperturbável, Virgílio,
coronel do exército, repetiu não poucas vezes que seu papel era o de garantir a
ordem, o que faria. Depois se soube que oficiais do 23º Batalhão de Caçadores,
que seria o centro da repressão, trabalhavam naquele transe pela sua cassação.
Mas o governador era sobrinho do Marechal Juarez Távora.
Finda a pressão dos endinheirados, ficamos ali, alguns políticos e auxiliares diretos do governador. Tentando recuperar o ânimo enquanto via diante de mim o desmoronamento de um sonho que até há pouco tínhamos como realizado, virei-me para meu amigo deputado Pontes Neto, um quadro de escol, e comentei, querendo ser otimista, mas carente de convicção, e ao mesmo tempo em busca do que quer que fosse que me tirasse das previsões pessimistas que me assaltavam: “- Pontes, isso é como um mandato que nos foi tomado. Em cinco anos tudo volta ao seu leito...” “- Não... - respondeu o sábio parlamentar - isso é coisa para dez a quinze anos”. Pontes seria um dos primeiros presos. Com o peso da realidade me oprimindo, tomei o rumo que as circunstâncias me permitiam, mas até minhas mãos chegou, na manhã seguinte, o jornal O Estado, com meu retrato na capa ao lado do deputado Moisés Pimentel, “empresário progressista”, em um encontro com camponeses promovido pelo Círculo Operário Católico, e a legenda: “Comunista até no gabinete do governador”. Ficou claro para mim que o alvo era o governador, e tive tempo para entender que Fortaleza ficara muito pequena. Logo chegaram os idos de abril, que pareciam não ter fim pois não nos deixavam uma só fresta para contemplarmos o horizonte. Nossas dores falavam de dias luciferinos, e falavam claramente as imagens de Gregório Bezerra, espancado, torturado, seminu sendo arrastado, corda no pescoço, exibido como presa de carniceiros pelas assustadas ruas do Recife. Depois, muito depois, seriam as histórias de Mário Alves, nosso dirigente (torturado até a morte nas dependências da Polícia do Ex;ercito, no Rio de Janeiro), e do menino Stuart Angel (trturado até a orte nas dependência da Base Aerio do Galeão.
Dois saudosos amigos, Luciano Magalhães e Aquiles Peres Mota, percorriam de carro as saídas de minha cidade.
***
O 31 de março segundo Almino Afonso- Um dos livros mais instigantes e informativos
sobre o golpe é o 1964, na visão do ministro do trabalho de João Goulart, da
autoria de Almino Afonso, parlamentar, jurista e advogado de primeira água. Bem
editado, foi pessimamente comercializado, e assim não obteve a repercussão
merecida. Documenta a abulia do governo,
e a farsa em que sempre se constituiu o dispositivo militar do Gal. Brasil,
Chefe da Casa Militar do Presidente. Leitura sempre indispensável, e mais do que
nunca preciosa nesses 60 anos da instauração da mais longeva e brutal ditadura
militar brasileira.
Marielle Franco - Com as prisões efetuadas no último domingo, 24/03, vem à tona o grau de desintegração institucional do Rio de Janeiro, já por muitos comentada, e ganha impulso o desnudamento da trama que levou ao assassinato brutal da vereadora e seu motorista, em 2018. Diante de indícios de que as motivações do crime não se circunscreveram a questões paroquias, e seu planejamento pode ter envolvido figuras estreladas da República, surge a pergunta: até onde irão as investigações?
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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