A noite de quarta-feira havia chegado faceira, dessas que o céu do sertão inventa só pra provocar suspiro — bonita pra chover, como dizia Dona Ritinha, e já tingida por umas gotas atrevidas que vinham refrescando o chão queimado de Paulo Afonso.
E dentro da Câmara de Vereadores, onde geralmente ecoam discursos, promessas e ocasionais apartes dramáticos, quem reinava agora era a solenidade dos imortais letrados: capas pretas, olhares sisudos, um silêncio grave de quem sabe que cultura tem peso e honra. Não se brinca.
Foi quando a porta rangeu.
O primeiro a perceber a movimentação atípica foi Aníbal Nunes, o imortal de Sertânia — nome de herói épico, porte de quem já encarou meio mundo e ainda sobra coragem pra encarar o outro meio. Endireitou-se feito guerreiro grego, pronto pra disputa.
Roberto Ricardo, o imortal do Recôncavo Baiano, mentalmente já traçava rota de guerrilha digna de Maria Quitéria: se fosse preciso, defendia a Câmara e a Academia nem que fosse com espada imaginária.
O Dr. Isac, valente da terra do aço, instintivamente coçou a cartucheira — um gesto, quem sabe, herdado do bisavô que, quem sabe, um dia pode ter conduzido comboio de tropeiro. Velho costume: antes de tudo, garantir o combate justo. Quantos "quem sabe..."
E então…
Silêncio.
Da porta surgia um cangaceiro.
Mas não um cangaceiro qualquer desses que botavam medo até em sombra. Não vinha armado de rifle, faca de punho de osso ou cartucheira tilintando. Vinha com livros. Muitos. De capa dura, mole, novinha, gasta — cada um mais cheio de história que o outro. Um cangaceiro escritor!
Era João de Souza Lima, o cangaceiro das letras, o homem que trocou pólvora por pesquisa, jagunço por historiador, emboscada por narrativa. O sertão inteiro respeita — porque é dos raros que entende o cangaço sem romantizar, sem demonizar, sem enfeitar demais ou de menos. Conta como foi. E isso dá mais medo que bala.
Os imortais respiraram aliviados.
A chuva engrossou lá fora, como se a própria caatinga dissesse:
“Oxente, era só mais cultura chegando, minha gente!”
João tomou assento na presidência da Academia de Letras de Paulo Afonso — um gesto que mais pareceu coroação do que posse. E aquela noite que tinha cara de carnificina virou, de repente, festa da inteligência.
Não houve tiro.
Houve aplauso.
Não teve sangue na parede — só ideias renovadas.
E o novo presidente, firme e sereno, entrou na casa dos imortais com a elegância de quem sabe que a trilha da cultura se faz com luz, coragem e boa vontade. Certamente terá sucesso, assim como teve o bravo Dr. Isac.
E a Câmara, que já viu de tudo na vida pública, naquela noite viu o melhor:
um cangaço que não mata,
não saqueia,
não ameaça —
mas que salva.
O cangaço das letras.
O único que ainda vale a pena temer e amar, porque muda as coisas de verdade.
Por: Luciano Júnior

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