A Ucrânia e seus algozes (Por Roberto Amaral)

A geopolítica não é monocromática, e a peça que se escreve no teatro da guerra em curso (um território que compreende a Ucrânia, mas que se expande por metade do mundo) tem mais bandido do que mocinho, e uma só vítima: as populações civis, mortas ou desterradas. Por um imperativo moral, os socialistas não tergiversam na denúncia da invasão da Ucrânia, ao tempo em que se recusam a sancionar a política de guerra do Pentágono, nossa adversária tática e estratégica desde o fim da segunda guerra mundial.

 A defesa da paz, tema caro ao humanismo socialista, implica a ativa condenação da guerra, necessidade do desenvolvimento capitalista, com a qual a Europa flagelou o mundo no s​éculo passado. O pacifismo socialista, porém, considera as condições históricas, como demonstram o esforço dos trabalhadores russos no afã de consolidar a revolução de 1917 e derrotar 14 exércitos invasores, e o empenho da jovem URSS na guerra contra a ameaça nazifascista, e seu posterior engajamento nas lutas de libertação nacional e descolonização em todos os continentes, no curso do último século. Os socialistas, ao lado dos trabalhadores brasileiros defenderam o envio de tropas para os campos de batalha da Itália: a História dizia que a prioridade era derrotar o nazifascismo.

Os socialistas brasileiros sempre defenderam a autodeterminação dos povos e hoje, mais do que nunca, desconhecem justificativa para rever essas posições que, aliás, vêm norteando a política brasileira desde Rio Branco, enriquecida a partir das experiências de política externa independente formuladas por Afonso Arinos e San Tiago Dantas nos anos 60 do século passado, revista e enriquecida pela política “ativa e altiva” de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia. Uma só vez, na República, o país desonrou essa história de altivez, quando, sob ditadura militar, misturou-se aos marines dos EUA que em 1965 invadiram a República Dominicana para depor o governo constitucional e democrático de Juan Bosch.

A soberania política e a integridade territorial de todos os países devem ser mutuamente respeitadas, e é evidente que uma soberania está sendo violada quando parte do território de uma nação livre e independente é invadida por tropas estrangeiras, como ocorre com a base de Guantánamo, em Cuba, ocupada pelos EUA. Claro, também, que a integridade nacional é golpeada quando o território de um país soberano se vê cercado por instalações militares de potências declaradamente inimigas.

Em 1962, ao descobrir que a URSS havia instalado armas estratégicas no território cubano, os EUA decretaram o bloqueio naval da ilha, e colocaram o mundo à beira da hecatombe nuclear, afinal afastada pela negociação de um acordo que, assegurando os EUA que não invadiriam Cuba, criava condições para a URSS retirar seus mísseis. Como foi a norte-americana naquele então, é legítima a preocupação da Rússia de hoje com o que significaria, para sua segurança, o ingresso da Ucrânia na OTAN.

Nas circunstâncias conhecidas, o primeiro e imediato vencedor dessa crise (visível pelo menos partir do rompimento dos acordos de Minsk pelo governo da Ucrânia, com a interessada benevolência das potências europeias) é o imperialismo, que sai das cordas para a retomada da liderança moral do Ocidente; imperialismo que mais ganha, política e economicamente, quanto mais a humanidade se dilacera nos conflitos por ele promovidos em todo o mundo. Com os EUA, igualmente fortalecida sai a OTAN (que deveria ter sido extinta com o término da Guerra Fria em 1991) e, nela, seu lado mais agressivo e militarista; a indústria da guerra e o tráfico internacional de armas festejam os novos tempos. Ao fim e ao cabo, a Ucrânia contará seus mortos e arcará com insondável dívida de guerra, que haverá de pagar aos aliados de hoje, por quem lutam e morrem seus soldados. Sobreviverá uma nova ordem internacional ainda mais frágil. A Rússia, que neste evento perdeu a batalha ideológica, já é tratada como pária, e sua economia pagará alto preço pelo isolamento, e dificilmente escapará de uma crise cambial. No entanto, está menos isolada do que nossos jornais nacionais asseveram: tem ao seu lado mais de trinta países, que ocupam cerca de metade do globo e incluem China e Índia. Quase metade da população mundial. Enfim, Putin, jogando seu xadrez, entregou as bandeiras da defesa da paz e da autodeterminação dos povos nas mãos da velha Europa colonialista, escravista e racista, da Alemanha do holocausto e dos EUA cujo belicismo e desprezo pelos princípios que fundam a Carta da ONU (e deveriam presidir a ordem internacional) ninguém ignora.

De 1950 aos nossos dias, em guerra permanente, os EUA (que, ao final da segunda guerra mundial, com as tropas do Eixo derrotadas e o Japão recuando de todos os fronts, explodiram duas bombas atômicas sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki) já promoveram mais de 700 intervenções militares ou golpes de Estado em nações e países soberanos. Nesse rol estão a Guerra da Coreia (1950-1953); a longa guerra (1965 a 1973) contra o Vietnã (onde cometeram todos os crimes de guerra elencados pela legislação internacional, a começar pelo emprego de napalm contra populações civis); o cerco à Síria; a destruição do Iraque; as invasões da Líbia e do Afeganistão; o assassinato de líderes e governantes nacionalistas como Patrice Lumumba, a sustentação de todas as ditaduras de direita contemporâneas, como as da família Duvalier,  de  Salazar, de Franco, Stroessner e Somoza. São os EUA, ainda, sócios das ditaduras do Qatar e da Arábia Saudita, e responsáveis pela instalação de um governo protofascista em Kiev.  Os EUA têm, espalhadas em 40 países, nada menos de 400 bases militares, 1,4 milhão de soldados, um sem número de naves e aeronaves armadas de ogivas nucleares distribuídas estrategicamente por toda a orbe. Quando as atenções são atraídas para a Ucrânia, e milhares de pessoas justamente tomam as ruas em defesa das vidas dos civis daquela nação europeia, os EUA bombardeiam a Somália, e sua aliada Arábia Saudita destrói o vizinho Iêmen.

A Rússia capitalista, sucessora da URSS e herdeira do czarismo, viu-se presa da armadilha norte-americana que vem dos tempos de Clinton, quando os EUA, ao invés de renunciar à Guerra Fria, que, aliás, perdera objeto com a crise do “socialismo real”, trataram de fortalecer a coalizão belicista e avançar temerariamente sobre a vizinhança da Rússia, fazendo ouvidos de mercador para seus apelos de segurança,  desafiando o orgulho de um povo de longas e profundas raízes históricas imperialistas e guerreiras. E fazendo tábula rasa da história comum da Ucrânia e da Rússia, que nasceu em Kiev (sua capital a partir de 882) formando um só país nos séculos IX e XII, de cujo seio a Ucrânia de hoje foi sacada no bojo do esquartejamento da URSS – um império, relembro para lamentar, desfeito como um castelo de cartas, após 75 anos de hegemonia do partido comunista, dilacerantes guerras civis, conquistas e perdas de território, e uma dolorosa guerra contra a Alemanha e seus aliados, que lhe ceifou mais de 27 milhões de vidas.

Por obra e graça do imperialismo, a Ucrânia foi convertida em enclave estadunidense na fronteira com sua irmã gêmea, que, com o pretendido ingresso na OTAN, converter-se-ia em base de mísseis de médio alcance mirando o território vizinho. Ao invés de cumprir com seu papel estabilizador na região, transformava-se em peão da disputa geopolítica, sem que esse papel atendesse qualquer sorte de necessidade.

Estavam dadas as condições objetivas para o conflito.

Não resultaria mais simples e soberbamente mais lógico que a Ucrânia optasse por operar como ponte entre os dois polos?  O questionamento está em Henry Kissinger (“To settle the Ukrnie crises, start at the end”, Washington Post, 5/03/2014) que via no ingresso da Ucrânia nas fileiras da OTAN como mais uma peça na perigosa montagem do confronto Leste-Oeste que arruinaria por décadas qualquer perspectiva de conduzir a Rússia e o Ocidente para um sistema internacional cooperativo.

Ainda não é a temida terceira guerra mundial, embora o czar russo já tenha posto de prontidão seu arsenal atômico. O mínimo que podemos afirmar é que as grandes potências estão edificando um mundo ainda mais perigoso do que aquele presidido pela Guerra Fria.

Vitoriosa já é a indústria da guerra; a invasão russa é o clique que acionou o armamentismo, prometendo novos conflitos que tendem a se espalhar pelo planeta e crescer de intensidade fugindo ao controle dos jogadores de um xadrez macabro, pois, no tabuleiro, ao invés de meras peças de jogo, estão seres humanos.

A História certamente julgará com severidade o presidente russo; julgará, porém, como julgou a hedionda história do colonialismo europeu, que escravizou povos e desestruturou continentes inteiros como a África, a Ásia e o Oriente Médio, e como julga os EUA e sua saga de intervenções militares em países estrangeiros e a desestabilização de um sem número de estados, desconstituindo governos democráticos e legitimamente eleitos  e instalando ditaduras militares como as que assolaram o Brasil e o Chile.

 

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Luiz Pingueli Rosa, o admirado amigo que parte, não era apenas um professor emérito, porque era acima de tudo um grande e destemido brasileiro. Perdemos um líder como poucos conheceu a ciência brasileira.  Pioneiro que não temia riscos, um inovador na cátedra, na administração universitária e no serviço público que honrou com competência e dedicação.  Pensador do melhor quilate, um formulador de teses, e ao mesmo tempo corajoso homem de ação, um militante da causa Brasil de que jamais se afastou, ainda quando a saúde precária cobrava repouso. Não fugiu a uma só das grandes causas de sua geração. Deixa um vácuo difícil de preencher.

Por Roberto Amaral.

*Com a colaboração de Pedro Amara

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