A guerra da Ucrânia ainda não é o armagedom do Ocidente, mas
pode chegar até lá, porque a batalha
real, que se trava em todos os quadrantes do planeta, diz respeito à disputa da
nova ordem mundial, anunciada pelo encontro da emergência da China com a decadência dos EUA. Essa guerra, global, estratégica,
permanente, já se opera em todos os níveis, no plano econômico tanto
quanto no plano político, no plano diplomático tanto quanto nas esferas ideológica e comunicacional. (A propósito,
a cobertura oferecida pelaRede Globo
revela seu extremo engajamento, ou seja,
uma extremada parcialidade. Não se trata, porém, de fato isolado. Ela segue o
padrão dominante da mídia internacional, que copia a linha editorial do The New
York Times). A novidade nessa guerra, é
o ensaio bélico levado a cabo na Ucrânia, que cobrará imprevisível rol de vidas
humanas perdidas. Pode ser o preludio do choque inevitável que os deuses do
Olimpo intentam adiar, enquanto os guerreiros aqui na Terra afiam suas adagas.
À Ucrânia foi
destinado o papel do molusco na briga entre o mar e o rochedo. Pagará alto preço.
No centro do conflito
armado – um dos cenários do confronto global, político, econômico,
estratégico-- temos um ator que não se apresenta no ringue, a saber, os EUA, a
inteligência que comanda o espetáculo remotamente, como um videogame
monstruoso, pois seus personagens são reais: soldados, homens e mulheres,
velhos e crianças. A personagem que aparece é o presidente da Ucrânia, marionete dos EUA, a quem se deve o golpe de
Estado que derrubou o presidente Viktor Ianukovytch, ponto de partida para tomada do poder pela extrema direita.
Coube-lhe dar a motivação da crise com o pedido de ingresso da Ucrânia na OTAN,
e ao permitir a instalação em seu
território de artefatos de destruição em massa, na fronteira com a Rússia. Era
cutucar o velho urso com vara curta.
O mundo todo, aterrorizado, clama pela paz ante a agressão
da Rússia. O que, porém, significa defender a paz num conflito como o
que se dá na Ucrânia? Condenar a Rússia e exigir sua rendição, sem garantias?
Ignorar que as ações empreendidas por EUA/OTAN há pelo menos 15 anos são,
também, atos de agressão? Ou considerar que não houve invasão do território
ucraniano pelas tropas de Moscou?
Mas o adversário é a China,
atingida por tabela, na medida em que o conflito põe em xeque seu principal aliado, a Rússia.
A Ucrânia não é sujeito no processo.
A estratégia norte-americana até aqui funcional, é levar a
Rússia (o maior estoque de artefatos nucleares e o segundo exército do mundo) à
exaustão, como levou no século passado a URSS à debacle, forçada a uma corrida
bélica superior aos seus recursos. Sua tática é promover a guerra por
procuração, livrando-se dos percalços sofridos lá atrás no Vietnã, e mais
recentemente no Afeganistão. A Ucrânia, assim, é uma contingência, quase um
experimento, e a guerra uma oportunidade
de ouro para o complexo industrial-militar de que nos falou o general Dwight D.
Eisenhower, no discurso de transmissão da presidência dos EUA a John Kennedy,
responsável pela fracassada invasão de Cuba (1961). Assim, a continuidade desse conflito e a
abertura de outras frentes, principalmente fora da Europa e longe dos EUA,
atendem a uma vasta gama de interesses, dos mais variados matizes.
Como dito, a guerra, no momento, atende ao planejamento do
Império, empenhado em impedir ou adiar a troca de guarda com a China, o que
explica a OTAN (sob seu diktat)rejeitar a hipótese de uma Ucrânia neutra, negando à Rússia as
garantias de segurança que os EUA e toda potência militar consideram como
direito inalienável. A resistência à Rússia visa a enfraquecer o principal
aliado da China, de resto também ameaçada pelo poder de fogo dos EUA instalado
em Taiwan, um verdadeiro “porta-aviões terrestre”, a apenas 230 quilômetros de
sua costa. A Ucrânia é o sparring que os EUA escolheram para desafiar a Rússia.
Esta, por seu turno, invadindo sua vizinha, ferindo sua soberania, nutre a
esperança de livrar-se da instalação de mísseis da OTAN em suas fronteiras.
A guerra, no atual estágio, ainda um foco isolado na Europa
(enquanto o morticínio corre solto no Oriente) tem por objetivo tático
enfraquecer a coalizão eurasiana. Os EUA jamais considerarão uma troca pacífica
de poder, como aquela orferecida pela autodissolução da URSS, e nada sugere que
a China e seus aliados, com destaque para o poderio bélico russo, aceite como
fato natural o desafio do “Ocidente”, na contramão do processo histórico que
anuncia, para além de uma nova governança mundial, o fim da hegemonia
anglo-saxã, no pódio desde 1815, trazendo em seu prontuário dois séculos de
colonialismo e imperialismo, duas guerras mundiais, um incontável número de
guerras localizadas, guerras terceirizadas, invasões e genocídios.
Moscou, com a China às suas costas, e na atual contingência, luta para
sobreviver; não pode perder, pois a brutal alteração do quadro de forças pode
precipitar o conflito EUA/Otan x China/Rússia - o que, presentemente, não
interessa a nenhum dos contendores. A estratégia chinesa conta com o arsenal
atômico da Rússia e a experiência de suas forças armadas. A negociação, o fim
da beligerância significando um armistício em face do conflito maior entre as
duas coalizões, encontra, porém, uma
barreira na lógica da guerra: pois quanto mais durar o conflito, mais a Rússia
enfrentará dificuldades (econômicas e políticas), e mais ganharão os EUA e seus
aliados. Além do alto custo de uma guerra, não se deve subestimar o peso das sanções econômicas em proporção
jamais vista. De outra parte, o conflito constitui preciosa
fonte de recursos para os EUA e seus aliados, sôfregos pela venda de
armas e equipamentos, pela conquista de mercados, pelo estabelecimento de áreas
de influência, pela desestabilização de concorrentes. Enquanto esse for o cenário, não interessará
aos EUA qualquer sorte de negociação. Sua tática deverá ser a de esperar a
exaustão do adversário, aparentemente surpreendido com a lentidão do progresso
de suas forças, que deve ensejar tanto maior resistência da Ucrânia quanto
maior desgaste, militar, estratégico, político e econômico da Rússia. Sem dar
um tiro, sem precisar desembarcar no cenário da luta, poderão os EUA ganhar,
mesmo que a Rússia não perca militarmente; basta prolongar a guerra fornecendo
munição à Ucrânia, por exemplo) e assistir de longe tanto o desgaste das forças
de Moscou no campo de batalha (que se
supunha não passaria de uma Blitzkrieg)
quanto o desgaste de Putin
no front interno. Há alguma similitude entre essa
estratégia e aquela que levou à debacle da URSS, em 1991.
O fortalecimento da resistência ucraniana, é, certamente, o primeiro passo para
prorrogar o conflito contra a estratégia do invasor, como ocorreu no Afeganistão.
É possível, igualmente, que o grande
encontro apocalíptico se materialize
numa serie de conflitos de menor
envergadura. Um insurgente exército
ucraniano (financiado e treinado pela OTAN) pode prolongar o conflito e impor
pesados danos às forças russas. A resistência dos vietnamitas e as perdas
impostas ao exército invasor construíram nos EUA a reação da opinião pública
contra a guerra. Assim também a resistência da guerrilha afegã contra a
presença das tropas soviéticas é contabilizada como um dos fatores que
apressaram a debacle do regime de Moscou.
É um risco, já vivido por outras poderosas potências
militarmente vitoriosas, que a Rússia se veja na continência de refém de sua
própria vitória, não podendo abandonar, para não perdê-lo, o espaço conquistado,
permanecendo porém sem garantias para sua segurança. Precisará de um pretexto
para o armistício, quando este se oferecer como do interesse dos EUA.. Pelo
andar da carruagem, e considerando o investimento na guerra, é improvável que Moscou, ao fim e ao
cabo, se contente com menos que a
garantia de sua segurança, cujo condicionante fundamental é o não ingresso da
Ucrânia na OTAN e a autonomia das províncias do Donbass.
De uma forma e de outra, tanto Washington quanto Moscou
sabem como as guerras começam, mas que é impossível predizer seu
desenvolvimento e principalmente seu fecho. Desta feita, todas as alternativas
são plausíveis, desde uma solução pacifica a uma escalada contínua
convencional, que chegará ao limiar da opção atômica. Uma paz amarga imposta a
uma Ucrânia derrotada, tanto quanto a retirada das tropas russas de mãos
abanando, são hipóteses difíceis de serem admitidas hoje.
O caminho lógico para a paz parece, hoje, interditado, e
mais distante ainda ela parecerá na medida em que o conflito de blocos, já em
um crescendo, avance.
O embate de nossos dias é explicado pela principal
preocupação de segurança nacional dos EUA, que é a competição estratégica de
longo prazo com a China e a Rússia. O
que está em jogo é a decadência do grande império do Norte, e a emergência da
China, a hegemonia mundial das próximas décadas, o futuro do
"Ocidente". Está em jogo a possibilidade da hecatombe, porque o
próximo conflito mundial, se houver, será nuclear. A guerra final. É uma
questão, pois, que diz respeito a todos os povos.
Os tempos responderão se é possível uma troca de comando da
ordem internacional sem o horror de uma guerra.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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