Em uma das votações da reforma da Previdência, o Congresso, cego e surdo aos anseios da população, precisou de ajuda da polícia para votar. |
Reforma da legislação eleitoral não é reforma política, e é desta que carecemos para reconstruir a República.
A crise política, que se desenvolve no corpo de aguda crise institucional, em progresso, denuncia o esgotamento do nosso modelo de democracia representativa, aquela que deriva da soberania popular, cuja única voz é o voto livre.
Não se trata, porém, de fenômeno ‘natural’, resultado do mau humor dos astros, pois decorre da captura, pelo poder econômico, do sistema de representação, maculando-a de forma letal. Exemplo desta distonia é oferecido pelo Poder Legislativo, em sua maioria esmagadora composto por parlamentares que não representam o eleitorado, mas sim os interesses do empresariado, o grande “eleitor”, pois é o financiador das eleições. Evidentemente, a manipulação do voto pelos donos do dinheiro e seus servidores (como os meios de comunicação de massas) ditaria a composição de nossas casas legislativas, absurdamente descompassadas da sociedade brasileira.
Vejamos o perfil da Câmara dos Deputados fornecido pelo Dieese: 42% dos deputados são empresários (incluindo fazendeiros) e apenas 22% são assalariados; 49% são homens e 12% mulheres, num país em que as mulheres representam 51% da população, e apenas 10% são negros, que, no entanto, somam 54% da população.
De cada três parlamentares, dois estão com o nome inscrito na Dívida Ativa da União, um total de 337 num colégio de 513 representantes, e respondem por um débito de quase 3 bilhões de reais. Diz o dono da JBS que seu conglomerado financiou a campanha eleitoral de algo como 1,8 mil candidatos. E não são, ainda, públicas, as cifras da Odebrecht, da OAS, da Camargo Correia et caterva.
A quem pertencem os mandatos assim adquiridos?
Só a carência de representação pode explicar o parlamento de hoje, cego e surdo aos sentimentos e necessidades da população. Não se trata, porém, de autismo político, mas do reconhecimento, pelo parlamentar, da fonte real de seu mandato: o poder econômico.
A consciência prática dessa origem explica por que em um poder dependente do voto, pode o parlamentar, sem medo de perder o mandato ou de não renová-lo, aprovar a “reforma” trabalhista e a “reforma” da Previdência. E, ainda, tornar-se cão de fila de um governo ilegítimo, afundado em fraude e corrupção – cujo chefe é o próprio presidente da República, rejeitado por 93% da população, segundo o Datafolha.
Se o eleitor não se vê representado pelo representante, se ele não vê na política o meio de defesa de seus direitos e interesses (e os de sua comunidade), por que levaria a política a sério?
A desmoralização da política é a grande via que o autoritarismo percorre para atingir a democracia tout court, mesmo em se tratando de uma democracia para poucos, como a nossa.
A Procuradoria-Geral da República anuncia para breve mais duas denúncias contra o presidente. Somam-se, assim, em Michel Temer, presidente perjuro, a incompetência, o mandonismo, o autoritarismo e o desvio de funções, acentuando sua ilegitimidade.
Hoje amargamos mais um anúncio de queda do PIB, o aumento da dívida, a queda da arrecadação e a agudização do déficit fiscal. Fracasso absoluto dos “salvadores da Pátria”. Em apenas dois pontos avança o governante: no desmonte de nosso país (compreendendo a desnacionalização da economia) e na tentativa de revogação de direitos dos trabalhadores. E o primeiro-ministro Henrique Meirelles (chegado do Banco de Boston e do Conselho da holding dos irmãos Batista) já anunciou para breve o aumento dos impostos, diante do silêncio da Fiesp, que não sabe onde enfiar seu pato.
Mas não é este, ainda, o caráter mais danoso da famiglia que tem no presidente da República o seu capo e no Palácio do Jaburu sua caverna. O mais deletério está no projeto, em curso avançado, de, para além de destruir com os direitos dos trabalhadores e aposentados, promover em trote apressado, a desconstrução nacional, demonizando a política, privatizando a preço de banana empresas estatais essenciais ao nosso desenvolvimento, fomentando a desnacionalização da economia, abrindo generosa e irresponsavelmente nosso território e nossas fronteiras ao capital privado estrangeiro, renunciando, por fim, à defesa de nossa soberania e ao exercício de uma política externa condicionada pelos interesses nacionais.
É este o governo sustentado pela grande maioria dos meios de comunicação de massa e pelo Congresso Nacional, transformado em cartório do Executivo.
Mas não só por eles, pois ainda mais eficazmente está a sustentá-lo o Poder Judiciário, que não titubeia quando lhe cabe negar a ordem constitucional, rasgada inumeráveis vezes pelo STF, cuja existência só se justifica como seu guardião. A presidente Cármen Lúcia – que parece não ver a crise ética do STF – diz estar atenta “às vozes das ruas”.
Não sei a quais ruas se refere sua excelência, sei é que as ruas devem ser ouvidas, mas pelo Poder Legislativo, que no entanto diante delas faz ouvidos de mercador. O Poder Judiciário deve cuidar de outras vozes, como as da Constituição e do Direito. No frigir dos ovos, a quem ouve a alta Corte?
O Poder Judiciário comporta-se ora como partido da classe dominante, ora como partido corporativo, para manter seus privilégios antirrepublicanos.
A ilegitimidade de um Poder está imbricada na ilegitimidade de outro (interdependentes como irmãos siameses), e ela se completa no triste quadro de partidarização do Judiciário, do piso à mais alta Corte. A ilegitimidade caminha como rio por entre vasos comunicantes e expõe a crise da representação, sem a qual não há democracia sustentável.
Em face de tal quadro, os que o reconhecem apontam como saída uma reforma band-aid, que é simplesmente uma reforma eleitoral, por isso mesmo limitada, necessária mas insuficiente, incapaz de atingir o âmago de nosso desarranjo.
O que no Congresso e fora dele é identificado como reforma ‘política’ não passa, até aqui, de mera reforma das regras das disputas eleitorais. Ora a questão crucial, voltemos, é a crise, profunda, de nossa democracia representativa, que pede uma reforma política, compreendida esta como reforma do Estado (não me refiro ao estamento burocrático). O refazimento da legislação eleitoral deverá estar embutido na reforma política, que terá de rever as competências e as estruturas dos poderes da República (Legislativo, Executivo e Judiciário), carentes, os três, em níveis diversificados, de legitimidade, afastados que estão daquela vontade emanada pela soberania popular.
As reformas são interdependentes porque a reforma maior e substantiva, a reforma política, não será possível sem a reforma da legislação eleitoral. Mas essa reforma não tem vindo a lume porque algo digno desse nome ferirá interesses estabelecidos, dos quais os parlamentares são delegados.
Como romper o círculo vicioso?
As discussões relativas à reforma da legislação eleitoral não têm merecido o eco da grande imprensa, que elege seus temas segundo os interesses de seus donos. Os partidos se prendem aos aspectos menores, preocupados todos eles em garantir o melhor proveito. E assim, circunscrito o debate aos gabinetes da Câmara e do Senado, simplesmente se empurra com a barriga questão tão crucial, embora todos concordem com a necessidade de um novo ordenamento legal.
Uma alternativa é trazer o debate para a sociedade, abrindo caminho para uma mobilização popular em condições de influenciar o Poder Legislativo, esse que temos.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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