Reinventar o Brasil. (Por Antonio Prata)



Lá pelos 15 anos vi uma entrevista do Darcy Ribeiro que sempre me volta à memória. Num determinado momento o antropólogo dizia, daquele seu jeito sôfrego –o entusiasmo muito maior do que o fôlego–, que as religiões afro-brasileiras tinham uma característica maravilhosa: uma pessoa podia recorrer a elas não para pedir saúde, emprego, essas coisas nobres, mas para pedir, por exemplo, um amante gostoso, uma amante gostosa.

Por trás de empolgação com as religiões afro-brasileiras havia a empolgação com o Brasil, ou melhor, com as potencialidades do Brasil. Os orixás, próximos à vida, ao cotidiano, traziam de volta a intimidade entre os deuses e os homens, intimidade que o Ocidente havia perdido há milênios, com a hegemonia judaico-cristã. O que a Bíblia havia separado, levando o sagrado pra bem longe da gente, lá pro alto do céu, os batuques iriam religar. Não era pequena a contribuição do Brasil à humanidade.

Eu, que estudava num colégio chamado Oswald de Andrade e lia, à época, os modernistas, conhecia aquele entusiasmo com nosso país. Nós, a mistura das três raças, na periferia do mundo, deglutiríamos as influências externas e devolveríamos uma síntese única e original. "Erro de português", do Oswald: "Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português".

Quando eu nasci, a chuva ainda era bruta, mas já era possível enxergar, por entre as nuvens pretas da ditadura, a manhã de sol. Pasolini havia dito que os europeus jogavam futebol prosa, os brasileiros jogavam futebol poesia. Pois chegaria o dia em que essa poesia sairia dos campos e inundaria também as nossas cidades. As pessoas certas seriam eleitas democraticamente e conseguiriam organizar nosso potencial, fazendo com que o país funcionasse como a seleção canarinho. Seríamos criativos e eficientes, uniríamos beleza e justiça. O "jeitinho" era, então, uma virtude. O samba, a Bossa Nova, a Tropicália, Pelé e Garrincha eram vislumbres, teasers da manhã de sol, no "país do futuro".

O mais triste da crise atual não é a perda da esperança na política, mas a perda da fé no Brasil. Um país é feito, em grande medida, de fé. A pátria é uma ficção que depende de que todos compartilhem de meia dúzia de mitos e ilusões. (Não à toa, os EUA, país mais poderoso do mundo, são também aquele em que esses mitos estão mais profundamente enraizados).

A sensação atual é de que a nossa fonte secou. Jeitinho virou corrupção. A prosa germânica deu de 7 x 1 nos versinhos tronchos a que nosso futebol se reduziu. A mistura das três raças nunca foi até o fim. A casa-grande e a senzala perduram, 129 anos depois da abolição. A fala parnasiana do nosso presidente (escrevo na sexta (14), Temer ainda é presidente) é a prova de que regredimos para antes de 1922.

Mais do que um candidato para 2018, precisamos de um discurso –pra já. No que acreditamos? O que temos de bom? O que faz de nós um povo único (como, aliás, são todos os povos, cada um à sua maneira)? Não é verdade que nada presta. Pense em pessoas, músicas, costumes, livros, objetos, paisagens, comidas. Tenho certeza de que você encontrará algo para se apegar. Temos que encontrar. Nós vivemos aqui. Somos 200 milhões. Não cabe todo mundo em Miami ou no Uruguai. Nossa única opção é arrumar a casa. Precisamos reinventar o Brasil.

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