Tá na internet: José e a fome. (Por Helinando P. de Oliveira)



A fome é bem assim: silenciosa, dolorosa, ultrajante… José, filho de seu João biscateiro, sabe bem quem é esta maldita companheira de todo dia. Ele não conseguiu ter bom desempenho na escola por causa deste vazio que o perturbava. Foram tempos difíceis, seus pais estavam desempregados e não conseguiam vaga no mercado porque já haviam passado dos quarenta anos. Coitados, eles também se culpavam por isso. E José tentava resolver seu problema de alguma forma: pedindo, limpando sapatos e carros. Mas o futuro para quem tem fome é deveras complicado, pois não há o amanhã, a fome os consome agora, criando um buraco profundo que destrói os sonhos e planta a desesperança, lançando o amargo do fel no meio do peito, do lado do coração. E tudo amarga, tudo azeda, tudo entristece.

José viveu também de outras fomes: fome de justiça, de democracia, de direitos, de dignidade, de representatividade. Ele foi tão cidadão quanto qualquer outro, estando obviamente abaixo do mais importante de todos: o cidadão Mercado.

Foi pelo Mercado que José precisou passar fome, roubar – matar e morrer. É pelo mercado que reformar é tão preciso, é por ele que os direitos são tão voláteis. De tão forte, o Mercado fez até a democracia dobrar os joelhos.

E você, querido e estimado leitor desta coluna pode estar se perguntando: e cadê “A Ciência e o Sertão”? Digamos que o cidadão mor (o Mercado) que tudo consome, roubou até o tema da semana, quanta ousadia! Por esta semana não trataremos de elétrons e nem nanopartículas, faremos apenas esta justa homenagem a mais um brasileiro marginalizado.

José de João biscateiro nasceu pelas bandas de Ouricuri e ainda criança já demonstrava uma habilidade fora do comum com os números. Não foi preciso introduzi-lo às operações básicas. Aos quatro anos já somava, subtraía, multiplicava e dividia. José de João poderia ter estudado em uma escola de tempo integral, ter entrando em um curso de matemática, feito mestrado, doutorado…Teria brilhado fora do país, com medalhas, honrarias e prêmios. Sua família teria dignidade e ele choraria ao ouvir o hino nacional após cada cerimônia de premiação.

Mas o pobre José de João sofreu e padeceu de fome. E quando pedia uma moeda pela rua recebia xingamentos, ofensas, cusparadas. Pobre menino maltratado. Nenhum juiz ousou confiscar os seus bens, pois tudo o que ele tinha já lhe fora subtraído – os sonhos. José do João poderia até ser presidente do Brasil, dar comida aos pobres, alimentar esperanças, formar doutores. Mas esta nação escravocrata não admite sentir o cheiro do sonho dos pobres. Dizem que quando estão de barriga cheia, os pobres ousam sonhar tão intensamente que uma suave fragrância de amor passa a tomar conta de todos os cantos. Os sorrisos e a autoestima tomam conta das esquinas e a nação sobe junto ao grito colossal daqueles que não merecem ser excluídos.

Ao povo brasileiro foi reservado um pequeno espaço que fica logo abaixo da sola do sapato de uma burguesia podre, que usa dos meios de comunicação para convencer o seu povo que a desgraça de todos é culpa da desgraça de cada um.

E esta burguesia alimenta mitos jocosos, lemas podres como o “bandido bom é bandido morto”, fruto de mentes doentes, de uma sociedade estranha, que individualiza e decide transformar os lares em prisões com cercas elétricas, alarmes e tudo mais do que seja necessário.

O fato mais relevante é que hoje teve fim a vida do pobre José de João, queimado em uma parada de ônibus, enquanto tentava se proteger do frio severo do inverno. E assim foi embora mais um brasileiro, uma promessa, uma inteligência rara que perdeu a luta contra a fome. Ele não teve oportunidade, embora tenha contribuído por toda a sua vida com os impostos, que o ajudaram a permanecer na mais profunda miséria. E a gasolina sobe mais uma vez… Parabéns Brasil… Sejamos solidários na tarefa de nos fazer cada vez menos importantes para esta nação.

Ciência, abramos espaço e um minuto de silêncio por cada criança que neste momento não tem um prato de comida sobre sua mesa. Que estes milhares de José de João tenham um melhor futuro. Que seus sonhos sejam para sempre o seu maior tesouro.

Por Helinando P. de Oliveira é físico e professor da Univasf. Desenvolve nanotecnologia no sertão desde 2004, quando escolheu ser sertanejo e focar suas pesquisas no Sertão.

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