O pecado de Zefinha

Zefinha é uma daquelas carolas de igreja que quase já não se vê por aí. Mantém o legado das mulheres que ainda usam véu nas missas de domingo e uma fita no pescoço em respeito ao “Coração de Jesus”. E tudo isso em pleno século XXI. Algo que só acontece nas pequenas cidades do Brasil, onde o tempo insiste em não passar.

Mas Zefinha, mesmo vivendo no século XVIII no quesito religiosidade, está antenada nas notícias da política e tem seu candidato de estimação desde que ele se tornou presidente. Como gosta de repetir em alto e bom tom: “mudou a vida do povo pobre”. Principalmente dos nordestinos que hoje, orgulhosos, enchem o peito e dizem: “nos respeitem, pois o melhor presidente que este país já teve e tem é da nossa região”.

Ela, como boa cristã, tem seu grupo de amigas que já passaram dos cinquenta. A turma se encontra para ir juntas à igreja e aproveita para colocar as conversas em dia. Falam dos filhos que tiveram de sair da cidade em busca de emprego, dos que hoje estudam em faculdade graças ao ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, das filhas que insistem em namorar homens “sem futuro” e dos maridos, os que ainda estão vivos, invariavelmente criticados por não fazerem mais nada que preste.

Na era da polarização política, até mesmo as amigas religiosas acabam se envolvendo em polêmicas, como se fossem parte de torcida organizada. Naquele domingo, Maria do Rosário resolveu puxar um assunto que circulava nos grupos de WhatsApp das tias. Disse de forma provocativa que “quem vota no Lula não vai pro céu”. Pronto, estava criada a divisão entre as carolas, deu-se o início da terceira guerra mundial. Zefinha ficou arretada, abandonou as amigas e atravessou a rua em silêncio, sendo seguida por algumas das carolas. De longe se ouvia os passos delas.

– Tá vendo o que você fez? – sussurrou outra amiga, repreendendo Maria, que manteve o que disse e não pediu desculpas. 

As amigas foram à igreja, assistiram à pregação do Padre Inaldo como em todos os domingos. Mas, pela primeira vez, a catedral se dividiu em dois grupos. A polarização havia chegado até ali.

Incomodada, Zefinha já não conseguia dormir direito. A fala de Maria, de que votar em Lula significava perder a salvação, a deixava triste e preocupada. Não queria abrir mão do voto, mas também não queria perder o céu. Sua devoção, mesmo amando o trabalho do “seu presidente”, parecia não ser suficiente se isso significasse o caminho do inferno.

Decidida, procurou o padre para uma confissão. Entrou na igreja pronta para expor seu temor e cumprir o que o sacerdote determinasse. Estava preparada para rezar centenas de Ave Marias e Pai Nosso, penitência comum na Igreja Sagrada Família, que na praça principal da cidade de cinco mil habitantes.

Ajoelhou-se no confessionário diante do padre, que já ouvira histórias de maridos pulando a cerca, filhas enrabichadas por moleques sem futuro e carolas com pecados quase inconfessáveis. 

– Padre – sussurrou Zefinha, com a voz embargada. 

– Diga, minha filha – respondeu o padre, no tom habitual. 

– A Maria do Rosário me disse, dias atrás, que eu não vou para o céu.

O padre virou o rosto rapidamente e perguntou: 

– E por que ela disse isso a você? 

– Porque quem vota no Lula comete pecado e não vai para o céu – disse Zefinha, já com lágrimas nos olhos.

– Isso é coisa de quem não tem o que dizer. Volte a ela e diga que o padre Inaldo também é eleitor do Lula. Quem vai direto para o inferno é quem defende a morte de outros cristãos, quem usa o nome de Deus em vão, quem expulsa pessoas de uma cidade só porque são pobres. Minha filha, quem vai para o inferno é vota em Bolsonaro e quem nega o cristianismo e separa famílias com mentiras.

Zefinha abriu um sorriso, limpou as lágrimas e, desta vez, nem perguntou qual seria sua penitência. Apressou os passos em direção à porta da igreja, de onde só se via seu vulto. Pobre da Maria do Rosário quando Zefinha a encontrar.

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