Duas foram as surpresas: a chamada telefônica naquela hora
da noite, e a voz do outro lado da linha. Não era usual aquele meio de contato.
Mário Alves explicaria mais tarde ao companheiro assustado que viera de São
Paulo para uma reunião no Rio de Janeiro, e o quadro que o deveria recolher não
aparecera. Ele estava em uma churrascaria no Méier, e fui apanhá-lo.
Dos três principais dirigentes, Jacob Gorender era o mais
reservado, tanto nas relações pessoais quanto na avaliação do quadro político,
e, ainda distante de qualquer pessimismo, já indicava restrições à linha
tática. Era o principal teórico do grupo, e nos deixaria uma das mais
importantes contribuições do marxismo à tentativa de compreender a tragédia
brasileira. Seu Escravismo colonial nasceu e se firmou como um clássico, que
mais cresce de importância quanto mais é lido. Como Apolônio, conheceu a prisão
e a tortura, e, como o insurgente que vinha de 1935, a ambas sobreviveu. Tive a
sorte de conviver com ele pelo resto de sua vida. Ficava em São Paulo, Apolônio
aqui no Rio; Mário operava em circuito que incluía São Paulo, Rio e Niterói,
onde moravam Dilma, sua companheira de sempre, e sua filha Lúcia.
Apolônio destacava-se pelo ativismo; Gorender, pela
reflexão. Mário é a síntese e o imã, pois unia sua extraordinária vocação
intelectual e a exemplar formação marxista a um ativismo sem quartel a que se
aplicava na ânsia organizativa: era o filósofo ditando ação, decidido a
modificar o mundo, a partir de seu país. E aqui e então a urgência era derrotar
a ditadura, mas o grande projeto, projeto e toda a vida, era a revolução
social.
Nada obstante a tragédia política, as frustrações coletivas
e pessoais, a difícil sobrevivência física, o amargo da vida clandestina sem
promessa de sursis, Mário era ameno, cordial, afável e doce, sempre pronto para
o diálogo instigante, sem restrição de temas. No debate, convencia pelo rigor
do pensamento, mas sua força persuasiva contava com a ajuda de rara
simplicidade expositiva. Nada o impedia, porém, de ser firme na defesa de seus
pontos de vista.
Nessa noite que passaria em minha casa esquecemos nossa
casca de ovo, conversamos sobre filosofia, e muito aprendi. O mundo, acordado
pelo Maio de 68 na França (eu escrevia o livro Juventude em crise), refletia
sobre o levante estudantil e a irrupção urbana, discutíamos o papel do
proletariado e a emergência dos intelectuais. O mundo relia Sartre e tomava
conhecimento de Marcuse. Guardo sua rica exposição.
Na manhã seguinte saímos relativamente cedo e fomos cumprir
um rol de contatos pré-agendados pelo dirigente, alguns quadros políticos,
alguns jornalistas. Naquele então eu lecionava no curso de direito da
Universidade Gama Filho para turmas repletas de policiais, e trabalhava como
editor na Fundação Getúlio Vargas. Com intervalos que não excediam três meses,
era chamado ao DOPS, apresentava-me às 8 horas da manhã no prédio da rua da
Relação (de tantas más lembranças), como cobrava a intimação, para ser interrogado
no início da noite, após um dia sem água e sem mais nada, a não ser o
isolamento que tornava insuportável o lento caminhar do tempo, para ouvir as
mesmas perguntas e dar as mesmas respostas. Logo, porém, me acostumei com o
rito e me despi de maiores receios. A repressão naquela fase queria
simplesmente dizer que estava com os olhos em mim, mas pouco conhecia de minhas
atividades. Deixei a vida correr.
Na minha sala na FGV, certa vez, nessa mesma época, recebi
um companheiro de outra organização vindo de uma ação urbana em Fortaleza; ele
chegava a caminho da embaixada do
México, onde, ao contrário do exílio com que contava, se viu entregue a uma
patrulha da polícia. Padeceria nas mãos do exército e da tortura, mas esta é
outra história que pede outra hora para ser contada.
Naquela altura eu era o que em nosso jargão se chamava de
“submarino”, caminhando numa aflita corda-bamba para a qual fui conquistado
pelo meu amigo Aytan Miranda Sipahi, velha amizade de meninos no curso primário
do Ginásio Farias Brito, em Fortaleza. Na andança com Mário pelos endereços do
Rio lembrei-me das reuniões com Apolônio de Carvalho. Desde que nosso “ponto”
na Praça São Salvador fôra dado como inseguro, havíamos adotado o “método
volante”: eu o apanhava na Praia de Botafogo e saíamos pela cidade no meu
Gordini, invariavelmente às noites de quarta-feira, sem rumo preestabelecido,
revendo e trocando documentos, discutindo linhas políticas, e eu sempre ouvindo
relatórios que mantinham em alta meu ânimo. A direção desse carrinho intrépido
me levou a muitas idas e vindas a São Paulo. Numa feita regressou comigo Aldo
Arantes, já clandestino, sem que falássemos sobre nossas organizações distintas
e rivais, mas amparados por uma confiança ditada por uma amizade que, nascida
lá trás, se renova sempre que conversamos.
Volto ao rol de encontros do Mário. Feitos os contatos
necessários, uns animadores, outros decepcionantes, dedicamos o resto do dia e
a noite que começava para uma longa discussão, a melhor e mais instrutiva, a
mais longa e também a derradeira – pois, sem que eu soubesse, estava vendo o
meu amigo e dirigente admirado pela última vez.
A história, nada obstante suas advertências, não nos
concedeu o tempo de que carecíamos para o rearranjo de meios e rotas. Não
estava mais em nosso horizonte mirar o poder; o máximo de audácia então seria
impor resistência à ditadura, mas o que nos restava era simplesmente tentar
salvar a organização, e o grande empenho de Mário era reduzir ao mínimo as
perdas, porque as perdas eram inevitáveis. Qualquer objetivo estava cada dia
mais difícil, pois nossos avanços não eram significativos, enquanto a ditadura que
pretendíamos enfrentar mostrava-se cada vez mais forte, e cada vez mais
eficiente na repressão, que atingia requintes insuspeitados. Multiplicavam-se
as baixas, rareavam as adesões. Perdíamos terreno na lógica da luta armada e
não conquistáramos o apoio da opinião pública, separada de nós pelo muro de
ferro representado pelo controle dos meios de comunicação. Era o nosso “beco
sem saída”, o huis clos sartriano, a ausência de alternativa, mesmo
desfavorável.
Mário podia admitir o império da realidade ingrata, mas
dobrar-se estava fora de cogitação. Abandonar a luta seria renunciar às suas
convicções mais arraigadas, seria abandonar no campo adversário os companheiros
de luta. Sentia-se responsável pelo destino dos jovens que havia atraído, e não
admitia outra alternativa senão continuar caminhando, lado a lado: “Não posso
decepcioná-los”, repetia e repetia. Desapartado de aspirações pessoais,
materialista e revolucionário de ideias e objetivos claros, carregava consigo
um sentimento de missão por cumprir que transcendia o indivíduo, mais forte do
que tudo, mais forte mesmo do que os riscos que não receava.
O líder caminhava para cumprir seu destino de herói.
Foi ainda com surpresa que vimos o chão abrir-se para nos
devorar. A terrível lógica dos fatos. Nada sabíamos da prisão de Salatiel
Teixeira Ribeiro, e muito menos desconfiávamos do conteúdo de sua delação. Os
informes foram chegando, assustando, e
dando sentido ao quebra-cabeças: um a um os “aparelhos” vinham caindo, um a um
os quadros dirigentes eram presos, e torturados. Muitos saíram com vida, todos
conheceram processos, condenações e o presídio.
Neste janeiro de maus presságios registramos 55 anos da
prisão, dores e assassinato de Mário Alves, baiano da geração de Gorender,
Marighella e Giocondo Dias; revolucionário desde os 16 anos, um dos mais
relevantes intelectuais do movimento comunista. Jornalista, editor, escritor,
tradutor, deputado estadual, dirigente do PCBR, que fundara com Apolônio e
Gorender, foi preso e trucidado por oficiais do exército do Estado brasileiro
no Rio de Janeiro, em 16 de janeiro de 1970. Levado para as masmorras do quartel
da polícia do exército, na Tijuca, foi espancado, submetido ao pau-de-arara, a
choques elétricos e afogamentos, e, ao fim, empalado: foi-lhe introduzido pelo
ânus até os intestinos um cassetete de madeira com estrias de aço.
O martírio de Mário Alves, este é o termo preciso, só seria
conhecido muito tempo passado. Agonizante, foi jogado ao chão de uma cela, ao
lado da qual, separado por um tabique, Raimundo Teixeira Mendes me contou haver
assistido aos seus últimos momentos, capuz ligeiramente tombado, esvaindo-se em
uma hemorragia e dores lancinantes, pedindo água.
Naquela data era presidente da república o general Emílio
Garrastazu Médici; ministro da guerra o general Orlando Geisel; chefe do estado
maior do exército o general João Baptista Figueiredo; comandante do
primeiro-exército, responsável pela jurisdição do Rio de Janeiro, o general
Sílvio Frota; comandante do quartel da polícia do exército, palco desse e de
centenas de outros crimes hediondos, o tenente-coronel Freddie Perdigão
Pereira.
Antígona moderna, como Eunice, viúva de Rubens Paiva, como
Zuzu Angel, mãe de Stuart, como centenas de outras mães, esposas e filhas e
filhos assassinados pela ditadura militar, Dilma Vieira morreu em 2019, sem
poder enterrar o cadáver de seu marido, Mário Alves de Souza Vieira.
***
O fascismo não inova – O que diz Donald J. Trump sobre o
Canal do Panamá, a Groelândia e o Canadá, na verdade ameaçando o mundo, está
muito próximo da “necessidade alemã” de conquistar o Leste europeu. Hitler
falava em “espaço vital” (Lebensraum). O magnata, criminoso condenado por
Tribunal de Nova York, fala em “interesses estratégicos”, o mesmo argumento
falacioso que o sionismo vem usando para assaltar terras palestinas, dizimar
Gaza, atacar a Cisjordânia, bombardear o Líbano e avançar sobre o espólio da
Síria. As rodas da vida estão sempre a criar surpresas àqueles que supõem
conhecer os limites da iniquidade. O fascismo não inova, muito menos na
covardia. O que chamamos de civilização ocidental, esta trama judaico-cristã na
qual nos encontramos sem dela nos podermos apartar, está a dizer que a miséria
humana não tem limites.
O que o futuro reserva – Se Maílson da Nóbrega, o mago da
hiperinflação (quando deixou o ministério da fazenda, em 15 de março de 1990, a
inflação anual marcava 4.853%, a maior de nossa história, segundo o IPEA, que
então a apurava), é hoje consultor da grande imprensa econômica, e se Michel
Temer, o perjuro pedante, segue como voz adulada pela crônica política, onde
poderá estar o capitão da reserva remunerada Jair M. Bolsonaro daqui a uns
poucos anos, passados seus dissabores com os sistemas judiciário e penitenciário?
E a política ativa e altiva? – As declarações recentes dos representantes do governo brasileiro em resposta às acicatadas de Trump, o criminoso que retorna à Casa Branca, contrastam, lamentavelmente, com qualquer propósito de uma política externa “ativa e altiva”, e beiram a sabujice. Cabe lembrar que as relações entre países são sempre bilaterais, de mão dupla, e que o Brasil, malgrado as elites que tem, não é nem precisa ser caudatário de nenhuma nação estrangeira, seja esta uma economia em ascensão ou um império em declínio.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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