Tá na internet: Os usos (e abusos) do populismo


A luta de classes também é travada no terreno conceptual. O Banco Mundial, por exemplo, sistematicamente se contrapõe aos conceitos da esquerda por meio de uma novidade táctica: utiliza os mesmos conceitos criados pela esquerda, porém conferindo a estes um significado totalmente diferente, o que resulta em significados completamente diferentes daqueles originalmente propostos pela esquerda, ou no mínimo, torna tais termos suficientemente confusos para que se tornem inutilizáveis por esta. Em qualquer dos casos, o poder conceptual do termo criado pela esquerda é neutralizado.

Por exemplo, o termo “estrutural” costumava ser parte integrante do léxico da esquerda. Enquanto a teoria económica burguesa da direita preconizava tão somente “deixar as coisas para o mercado [resolver]”, a esquerda nos países do Terceiro Mundo sempre se opôs à tais soluções de mercado, com base na ideia de que em tais países os problemas eram “estruturais”; argumentava-se que as estruturas destes países tinham de ser modificadas, acima de tudo, através de reformas agrárias que impusessem a redistribuição de terras. As tácticas enganosas do Banco Mundial garantiram que o termo “ajustamento estrutural” fosse capturado e utilizado, ironicamente, para promover “reformas” pró-mercado, em vez de mudanças nas estruturas agrárias.


Da mesma forma, examinemos o termo “liberalização”. A teoria burguesa de direita sugere que quem quer que se oponha àquela é “não-liberal” e portanto implicitamente “autoritário” e “antidemocrático”; isto, a despeito do facto de que a “liberalização” tem precisamente o efeito oposto, o de desencadear um período de acumulação primitiva de capital, ao levar a efeito a privação em massa e suprimir os direitos de pequenos produtores, tudo de forma violentamente antidemocrática. É por isto que temos, ironicamente, afirmações como as de que Bolsonaro (que é impiedosamente antidemocrático) está a perseguir “políticas liberais”!

Porém, o desdobramento mais atrevido deste método, e também o mais malicioso, porquanto influencia parcelas significativas da esquerda, relaciona-se ao termo “populismo”. Este termo foi utilizado por membros do Partido Operário Social-Democrata Russo, em particular pela ala bolchevique, para referir-se às concepções dos "Narodniki" em seus debates sobre a estratégia da transformação revolucionária da Rússia, Os "Narodniki" preconizavam uma transição directa das comunidades rurais (mir) existentes no país ao socialismo. Os bolcheviques, em resposta, argumentavam que os mir não mais existiam como entidades uniformes, pois o capitalismo se desenvolvia rapidamente e esse desenvolvimento destruía os mir, e portanto o proletariado urbano recém-surgido deveria liderar a revolução. O livro “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia”, de Lénine, sublinhava este ponto.

O termo “populismo” era então empregado para descrever a tendência a enxergar o “povo” como uma entidade uniforme. E a crítica marxista ao “populismo” argumentava que esta visão tinha lugar precisamente numa época durante a qual as diferenças entre o “povo” eram crescentes. Naturalmente, os marxistas utilizam o termo “povo”, como em “ditadura democrática do povo”, mas enxergam o “povo” a ser composto por diferentes classes sociais, não como uma massa indiferenciada.

Bem mais tarde, nos anos 1920, voltou a emergir a visão de que o campo russo era composto de maneira uniforme por camponeses, sem diferenciação em classes sociais. Argumentava-se que as diferenças entre os camponeses correspondiam aos tamanhos das famílias, de tal sorte que o tamanho dos activos per capita era mais ou menos o mesmo. Um expoente dessa visão foi A. V. Chayanov, que era justamente chamado “neo-populista”, uma vez que revisitava a velha concepção populista de um campesinato sem diferenças de classe entre si.

No entanto, pode-se perceber que o termo “populismo” é utilizado, nos dias de hoje, com sentido muito diferente. De acordo com este sentido, o “povo” é visto em oposição à “elite”, e portanto, medidas com apelo “popular” que estejam em desacordo com as concepções da “elite” são defendidas como desejáveis. Este conceito de “populismo” é de tal forma confuso, que se pretende que dê conta de tudo, desde medidas redistributivas no terreno económico ao ódio social dirigido a grupos minoritários.

Para tornar plausível esse conceito incrivelmente elástico e pretensamente abrangente, traça-se uma distinção entre o “populismo de esquerda” e o “populismo de direita”: o primeiro serve para categorizar medidas redistributivas no âmbito económico, enquanto o açulamento do ódio social é classificado como “populismo de direita”.

Entre esses “populismos”, ambos assim desmistificados, há supostamente um caminho virtuoso livre do “populismo”, e esse caminho do meio, quando o examinamos de perto, nada mais é do que a execução das políticas clássicas neoliberais no reino da economia, e a subserviência à ideologia burguesa no reino da política. O termo “populismo”, neste sentido e em resumo, está inserido no discurso liberal burguês. Quando se classificam as medidas redistributivas como “populismo”, e portanto desaconselháveis, por dilapidar recursos às custas do crescimento económico, este discurso sugere implicitamente que o crescimento económico é, em última análise, benéfico aos pobres; em resumo, acredita-se no efeito de “gotejamento” do crescimento, mesmo com toda a evidência de que tal “gotejamento” é um conceito absolutamente falso.

Ainda assim, muita gente, mesmo na esquerda mundial, utiliza o termo “populismo” neste sentido liberal burguês. Em particular, utiliza-se este termo para caracterizar o rebrote da direita que ocorre em escala global. Assim, todos os tipos de movimentos fascistas, semifascistas e quase-fascistas e que defendem a supremacia deste ou daquele grupo religioso e deste ou daquele grupo étnico são tratados da mesma forma que movimentos e governos progressistas, que exigem ou implementam medidas redistributivas em favor dos pobres.

Uma consequência de tal caracterização é que ela oblitera por completo o carácter de classe de tais movimentos, e por obscurecer a natureza de classe de tais movimentos ou regimes, acaba por desencorajar toda análise de classe dos mesmos. Assim, o facto de um determinado grupo étnico ou religioso se tornar preponderante e espalhar o ódio na sociedade parece sempre ocorrer de forma súbita ou inexplicável, ou na melhor das hipóteses como algo transitório, sem relação com o capitalismo ou com a configuração de classes que prevalece na sociedade.

Há também uma caracterização paralela de tais movimentos, nomeadamente, como “nacionalistas”. Isto também oblitera distinções de forma crucial, particularmente a distinção entre o nacionalismo anticolonial e o nacionalismo supremacista. Quando se reserva o termo “nacionalismo” para esses movimentos e se “desmistifica” o nacionalismo como se fosse um supremacismo por si só, os nacionalismos anticoloniais ou anti-imperialistas são igualmente “desmistificados”. Com isso, glorifica-se implicitamente a globalização imperialista e trata-se qualquer desvio dessa globalização, qualquer tentativa de pôr em marcha políticas diferentes daquelas determinadas pelo capital financeiro internacional como “nacionalismo”, e por isso mesmo reaccionário.

No entanto, é um absurdo tratar o “nacionalismo” como uma categoria homogénea. O “nacionalismo” de um Hitler era fundamentalmente diferente de um “nacionalismo” como, por exemplo, o de Gandhi. Temos aqui a utilização de uma categoria homogénea para descrever fenómenos diversos e contraditórios, o que cria enormes dificuldades para os movimentos progressistas emancipatórios. Ainda assim, vastos sectores da intelectualidade, em particular da esquerda, são levados a pintar todos os “nacionalismos” com as mesmas cores.

Por vezes, utiliza-se um termo composto, como “nacionalismo-populismo”, para descrever os movimentos supremacistas de direita que actualmente varrem o mundo. Isto é duplamente equivocado, pois condensa ambas as ambiguidades: a do “nacionalismo” como um mal indiferenciado e o “populismo” como outro mal também indiferenciado.

O termo “populismo” foi assim transformado de seu significado original, ou seja, da visão de um “povo” indiferenciado em termos de classes sociais, em algo muito diferente, que suaviza a violência do supremacismo de direita e a reúne com medidas redistributivas em favor dos pobres, como se fossem aparentadas entre si. Neste processo, abandona-se, ainda, o pano de fundo da rica tradição marxista de análise dos movimentos fascistas, semifascistas, protofascistas e supremacistas sob o capitalismo, que percebe o florescimento de tais tendências como uma fortaleza em defesa do capitalismo em tempos de crise aguda. Não é preciso dizer que a burguesia liberal não vai aceitar a análise marxista, mas quando sectores da esquerda a ignoram e aceitam os termos liberais de análise, isto é o equivalente conceptual ao desarmamento.

Por: Prabhat Patnaik.

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