Fidel, com seus erros e seus
méritos, abraçou o império da realidade objetiva e entrou para a história.
Em Santa Clara, cubanos
fazem homenagem a Fidel nesta quinta-feira 1º
O ancião alquebrado que
acaba de nos deixar venceu todos os adversários com os quais se defrontou, e
sempre em condições extremamente desvantajosas, e nenhum deles era moinho de
vento, pois todos inimigos ferocíssimos, riquíssimos, e o mais perigoso de todos,
o império norte-americano, armado com modernos escudos, lanças e mesmo garras e
dentes atômicos.
Fidel Castro, que o processo
histórico transformaria no principal líder latino-americano do século XX, líder
libertário da relevância de Ho Chi Minh e Nelson Mandela, foi, para os
oprimidos de todos os continentes, para o grande universo dos subdesenvolvidos
e particularmente para nós, latino-americanos, uma luz, uma esperança, animando
vontades e ajudando a realizar sonhos de libertação nacional.
Aquele bastião de pé dizia
que a luta continuava.
Com sua partida, encerra-se
a saga dos heróis cervantinos da Revolução Cubana, Fidel, Camilo Cienfuegos –
que não conheceu o poder – e Ernesto ‘Che’ Guevara, que desprezou o poder e o
repouso do guerreiro: deixou saudade e saiu de cena admirado pelo que não
conseguiu fazer; sua imagem é icone de amigos e adversários, multiplicada pelo
sistema que não conseguiu abalar.
Fidel, com seus erros e seus
méritos, foi o amálgama da tríade, pois era o sonho sem limites, era a mística
revolucionária, mas era igualmente a práxis consciente de quem, sem renunciar
ao sonho e mesmo à aventura, dá os braços ao império da realidade objetiva.
A partir de Cuba – ilha
irrelevante do ponto de vista econômico, com seus 11 milhões de habitantes e
109.884 km2 de extensão (menor do que o
Ceará) em face de gigantes como o Brasil e os EUA –, Fidel cumpriu, por
décadas, com imensos sacrifícios para seu povo, o papel de esteio da luta
anticolonialista e anti-imperialista, indispensável para a construção de um
mundo socialmente menos injusto. Em quase toda a África os soldados cubanos
estiveram lutando – Angola é o exemplo mais relevante – em defesa dos processos
de libertação nacional.
Como poucos líderes
revolucionários, Fidel sobreviveu à sua obra e morreu como vencedor, e, como
todos os vitoriosos longevos pagaria alto preço no julgamento de seus
contemporâneos. Ainda aguarda o crivo da história.
Venceu antes de tudo a
ditadura luciferina de Fulgencio Batista, o criminoso desvairado, sem limites,
encerrando décadas de assassinatos, torturas e toda sorte de barbárie. Venceu
reiteradas vezes o poderosíssimo império americano, distante apenas 150
quilômetros de sua costa: venceu o general Dwight Eisenhower, o primeiro
presidente a decretar embargo comercial contra Cuba (1960), venceu John F.
Kennedy e a invasão da Baía dos Porcos (1961), venceu Richard Nixon e 634
tentativas de assassinato comandadas pela CIA (O Globo, 27/11/2016); venceu
todos os presidentes americanos contemporâneos a ele – todos seus adversários e
todos tentando a destruição do projeto cubano de regime socialista, bem como
tentando sua eliminação física.
Cuba e Fidel, a partir de
certo momento uma unidade, sobreviveram à queda do Muro de Berlim, à debacle da
União Soviética e à transição da China para o capitalismo de Estado.
Sobreviveram à Guerra Fria e à chantagem
do conflito atômico. Sobreviveram ao cerco das ditaduras latino-americanas
instaladas em nosso continente pelos Estados Unidos nos anos 1960-1970.
Cuba, enfim, superou mais de
50 anos de cerco político-econômico (em 1962 os americanos decretam embargo
econômico total à Ilha), diplomático e militar da maior potência do mundo,
sobreviveu à crise do socialismo real e à globalização. Derrotou as
oligarquias, os insurgentes, os sabotadores internos e externos.
Ao funeral de Fidel –
liderança que os cubanos dividem com parcelas significativas das grandes massas
de nossos países –, comparecerá um povo respeitado, soberano e solidário,
orgulhoso de sua trajetória e consciente de seu papel na história. Este, seu
legado.
Com a exceção da revolução
de 1917, e ao lado certamente da Guerra do Vietnã, nenhum outro processo social
terá influenciado tanto o mundo, e principalmente nosso continente, quanto a
revolução cubana e nenhum líder exerceu tanto fascínio entre as multidões de
jovens esperançosos quanto Fidel.
Nenhum líder permaneceu no
pódio por tanto tempo, e não conheço outra identificação tão profunda, tão
íntima entre o líder e sua gente, entre a história do líder e a história de seu
país. E muito raramente um líder terá sido tão sujeito da história, artesão dos
fatos, cinzelando as circunstâncias.
A Cuba de hoje resolveu
problemas que ainda se agravam em países relativamente ricos, como o nosso:
erradicou a miséria e o analfabetismo, universalizou o acesso à saúde de
qualidade (apontado ao mundo pela OMS como exemplo a ser seguido) e à educação.
A Cuba que Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto “Che” Guevara libertaram
no réveillon de 1958-1959, porém, era, naquele então, apenas o maior prostíbulo
do Caribe, balneário de gângsters controlado pela máfia e pelo tráfico, país
sem economia própria, sem indústria, limitado à monocultura do açúcar.
Ícone da luta
anti-imperialista, ícone da revolução em nosso continente, e de uma revolução
socialista, símbolo da preeminência da vontade política sobrelevando às
teorizações, Fidel Castro, líder de uma revolução impossível que no entanto se
fez real, foi o grande nome de minha geração que em 1960 ingressava na
universidade.
Cuba era a nossa Dulcineia,
a ínsula que o sonho do cavaleiro nos prometia. Cuba era uma esperança, sua
resistência, sua sobrevivência valiam como o certificado de que eram possíveis
e viáveis todos os nossos sonhos de jovens socialistas que logo seriam chamados
para o enfrentamento da ditadura militar instalada em 1964.
Visitei Cuba por diversas
vezes, em tempo de bonança e em tempos de “período especial” – assim chamado
aquele que se sucedeu ao suicídio da União Soviética. Visitei Cuba como
dirigente político, quando, com Jamil Haddad, estava incumbido da tarefa de
reorganizar o Partido Socialista Brasileiro, que consignava em seu programa o
compromisso com a defesa da Revolução Cubana.
Foram muitas as delegações
trocadas entre o PSB – então um partido de esquerda – e o Partido Comunista
Cubano. Conheci e convivi com seus principais líderes. Em algumas oportunidades
pude viajar por suas províncias, conversar com sua gente, visitar suas escolas
e universidades, seus centros cívicos, conviver com seus estudantes e intelectuais,
dialogar, debater, discutir. Testemunhei suas dificuldades e pude acompanhar a
dedicação majoritária em torno do grande projeto.
As circunstâncias me
ensejaram vários encontros – longas conversas, sem hora para começar e sem hora
para terminar – com o “Comandante”, em Brasília, em São Paulo e principalmente
em Havana. No primeiro desses encontros, Fidel disputou com o senador Jamil
Haddad, então presidente do PSB, quem mais conhecia o programa siderúrgico
brasileiro.
Visitei a Ilha outras vezes
para participar de congressos e seminários diversos. Na última vez que
estivemos juntos, eu integrava uma delegação de escritores e políticos
brasileiros que comparecia ao um congresso latino-americano. Nosso bate-papo
começou por volta das 22h e só terminou em torno das 4-5 horas da manhã. Nesse
encontro, Fidel teve a oportunidade de discorrer, para uma plateia espantada,
sobre o quadro político de cada um de nossos países. E ele, só ele assim,
grande parte do tempo falando de pé.
Sem maiores ilusões quanto à
supremacia da práxis, nos chamava a atenção para os dias vindouros, difíceis,
dizia ele para nossa surpresa coletiva, a reclamar de todos, militantes de
esquerda, muita reflexão, muita produção teórica. Muita recuperação das lições
da História. Aquele homem, por excelência homem de ação e chefe de Estado nos
ditava a lição de Engels: “Não poderemos prever o futuro senão quando tivermos
compreendido o passado”.
Permito-me reproduzir aqui
algumas palavras do prefácio que tive a honra e o prazer de escrever para o
belo livro de Cláudia Furiati (Fidel Castro – Uma biografia consentida):
“Montado no Rocinante que as
circunstâncias lhe permitiram, à frente de pequeno exército de desvairados,
vestido apenas na armadura de uma paixão desenfreada por sua Dulcineia, Fidel é
um Quixote moderno, o cavaleiro da triste figura, apólogo da alma ocidental que
deu certo, derrotando não moinhos de vento, mas dragões verdadeiros, os quis,
porém, vencidos, renascem para a luta, e o líder cubano, tanto quanto o herói
cervantino, não conhece a paz, mas sua Dulcineia permanece preservada. Não
economizou sonhos, dores e meios”.
Roberto Amaral é escritor e
ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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