O golpe em curso só para quando desmontar o Estado nacional.


Só uma reação popular pode evitar um retorno à era pré-Vargas, do Brasil agroexportador e importador de todo o resto.

As atenções dos analistas se voltam para a rejeição, pela Câmara dos Deputados (a mesma que depôs Dilma Rousseff), do pedido de licença do STF para processar o ainda presidente da República. Exegetas de todos os naipes se esmeram na procura de significado nos números de votos pró e contra abertura de processo, e há os que perscrutam os astros à procura de luz para a gritante indiferença popular. Teria o povo, cansado e decepcionado, desistido do país, ou simplesmente se deu conta da inutilidade de seu empenho diante de uma partida já decidida na ausência de escolha, pois tratava-se, aquela votação, tão-só de trocar, ou não, seis por meia dúzia?
Ora, o relevante para os grupos que se apossaram do poder, cevados desde o Brasil colônia na sonegação de impostos, na corrupção e na grilagem, não é a escolha do timoneiro sem autonomia; o que os mobiliza, na verdade escancarada, é a sustentação e aprofundamento do desmonte da “Era Vargas”, o sonho da casa-grande desde a intentona de 1932, até hoje cultuada pela oligarquia paulista.
Vargas é ainda o espectro que rouba o sono da Avenida Paulista. As menções a reformas e mais isso e mais aquilo são a senha para impor o ajuste de contas e, com a revivência do passado, impedir o parto do futuro, a saber, a emergência de sociedade menos injusta e mais inclusiva, pois era esse o limite do varguismo e dos projetos do trabalhismo, apodado de “populismo de esquerda” pela sociologia paulista, que jamais dialogou com Florestan Fernandes.
O combate à “Era Vargas”, e, por extensão, ao trabalhismo de um modo geral, o que explica o ódio incontido a Jango e a Brizola, foi sempre o grande leitmotiv dos grupos exportadores, das casas de comércio importadoras e do capital financeiro imperialista. Por isso mesmo, o anti-varguismo encontraria campo fértil para sua disseminação em São Paulo, cuja industrialização ocorreu a despeito do reacionarismo das oligarquias agrárias, que, todavia, impuseram o viés conservador.
Ali, a reorganização e politização do sindicalismo, já ao final da ditadura de 1964 e sob a égide da nascente “era Lula”, teria como elemento aglutinador o combate ao “peleguismo” – termo grafado pela direita para indicar, pejorativamente, o sindicalismo herdado de Vargas e partilhado com os dirigentes comunistas, do antigo “Partidão”. Para o petismo daquele então a CLT era uma arcaica tradução da Carta del lavoro, de Mussolini, e Vargas apenas um ditador. Por seu turno, o tucanato, nascido de uma costela do PMDB (de onde herdou o DNA), anunciava, pela voz de FHC, seu grande sonho: “varrer a Era Vargas”.
O primeiro grande golpe contra a “Era Vargas”, pós-redemocratização de 1946, foi disparado em 1954 com a sublevação militar (Eduardo Gomes, Juarez Távora, Pena Boto) que, açulada pela direita civil (Carlos Lacerda à frente) impôs a deposição de Vargas. O antigo ditador, agora presidente eleito e democrata, se viu acossado por haver ousado atribuir ao Estado o papel de indutor do desenvolvimento, consubstanciado na criação do BNDE, da Eletrobrás e da Petrobras. Quando lhe puxaram o tapete do apoio militar, o presidente não tinha mais condições de apelar às massas, pois seu sindicalismo de cooptação deixara de ser a vanguarda dos trabalhadores.
Naquele 24 de agosto as massas, até então silentes, saíram às ruas, desorientadas, numa explosão de desespero. Mas àquela altura já era tarde, só lhe restando chorar a morte de seu líder.
Quando esse varguismo ressurge com a eleição de Juscelino Kubitschek, em 1955, a mesma direita de 1954, agora no poder,  intenta o impedimento da posse dos eleitos, enfim desarmado pela dissidência do Marechal Lott no episódio do “11 de novembro”, que já faz parte da História.
Poucos anos passados, em 1961, frustrado o golpe populista de Jânio Quadros, as forças civis e militares de sempre intentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart. O veto a Jango repetia o discurso de 1954 e 1955. Sob a liderança do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, as forças populares se levantaram em defesa da legalidade. A irrupção derrubou o veto a Jango mas não teve forças para evitar o golpe do parlamentarismo, traficado nas caladas da noite entre forças políticas e militares. Como sempre, a conciliação da classe dominante prevaleceu. Para assegurar a posse de Jango, impôs-se emenda parlamentarista votada às pressas, mediante a qual, despido de poderes, o herdeiro de Vargas assumiria a Presidência, mas sem condições de governar.
Em 1964, o quadro se reproduz (a História brasileira é recorrente), com desfecho consabido, e a direita obtém, com a deposição de Jango, afinal lograda, e a implantação de uma ditadura longeva, aquela que parecia ser sua definitiva vitória sobre a “Era Vargas”. Entretanto, já era outro, então, o Brasil. Castello não conseguiu fazer o sucessor, e os governos militares que se sucederam restabeleceram o compromisso com o desenvolvimento, embora autocrático, e sob a égide de forte repressão que compreendeu prisão, tortura e assassinatos.
A ditadura é finalmente derrotada, mas não a persistente tentativa de aplastar a “Era Vargas”, que continuava a incomodar. Depois do assalto collorido, tivemos o neoliberalismo antivarguista e antinacional dos anos FHC, afinal superados pelas eleições de Lula.
Mas, o que era (é) o varguismo, ou pelo menos o que ele simbolizava para o País e a nação? Pinço alguns aspectos e o primeiro deles é a proteção (paternalista, se quiserem) dos trabalhadores, cuja grande marca – daí o ódio que desperta – é a Consolidação das Leis do Trabalho, editada ainda sob o Estado Novo. O varguismo pode ser identificado ainda pela opção por um desenvolvimentismo de viés industrial e tentativamente autônomo, donde a opção por políticas nacionalistas e a busca de soberania. Seus símbolos são o salário mínimo, a Previdência Social, o BNDE, o monopólio estatal do petróleo e a Petrobras, a Eletrobrás, a consolidação do CNPq e da universidade pública e, símbolo maior, nessa análise, a Cia. Siderúrgica Nacional, assegurando o aço sem o qual não se poria de pé o sonho industrialista.
E aqui se encontram o varguismo e o lulismo, malgré lui même, pois, conscientemente ou não, os governos lulistas, principalmente os dois primeiros, foram administrações programaticamente similares ao varguismo, e, por isso mesmo tão violentamente rechaçados pela oligarquia agroexportadora, mais e mais acompanhada por seitas evangélicas neopentecostais. Quais são suas características marcantes senão o desenvolvimento autônomo, a defesa da empresa nacional, a  emergência das massas, e a utilização do Estado como indutor do desenvolvimento? Essa raiz varguista decretou o fim do mandato dilmista, pela necessidade de brecar a continuidade do projeto lulista, que pode ser medido com os seguintes números: de 2001 a 2009 a renda per capita dos 10% mais ricos cresceu 1,5% ao ano, enquanto a dos 10% mais pobres aumentou à taxa anual de 6,8%.
A reação ao lulismo ou o combate anacrônico ao varguismo, objetivado a partir da deposição da presidente Dilma, não se encerra com a ruptura de 2016, pois, sua tarefa atual é cerrar as vias de seu retorno (do lulismo), amanhã, em 2018 ou quando houver eleições. Enquanto isso, remover as conquistas sociais que remontam seja ao varguismo, seja ao lulismo.
Para tal desiderato a direita não medirá esforços nem julgará meio que levem à destruição do ex-presidente e do que ele, independentemente de sua vontade, representa para o povo brasileiro, por que não há, da parte da direita (a História o demonstra sobejamente), qualquer compromisso com a democracia representativa. Isso quer dizer que as eleições até podem ser realizadas— advirtamos sempre – mas se de todo for afastada a hipótese de recidiva lulista, com Lula ou sem ele. Mas, como a principal ameaça eleitoral é o ex-presidente, torna-se fundamental removê-lo do pleito, como for dado. Se de todo revelar-se impossível deter sua candidatura (as pesquisas de opinião indicam que hoje ele teria algo como 50% das opções de voto), o golpe de mão, relembrando 1961, será ou um ‘presidencialismo mitigado’, ou o parlamentarismo pleno, já em 2018, como sem rebuços pleiteia o inquilino do Jaburu, quando, tornada irrelevante a presidência, qualquer um poderá ser eleito, até um quadro de esquerda, pois o poder ficará com o Congresso, independentemente de sua ilegitimidade. Aliás, quanto mais ilegítimo, mas dócil aos projetos da casa-grande, de quem é mero despachante.
O golpe em curso precisa de ser detido enquanto não conclui o projeto de desmontagem do Estado nacional, de nossa economia, de nossa soberania, de nossa ordem jurídica, e, afinal, como consequência, a desmontagem da democracia representativa, recuperada com tantos sacrifícios.
Como detê-lo, em face de um sistema de comunicação que professa a religião do antinacional e do anti-povo, solidário, portanto, com a blitzkrieg desencadeada contra as forças populares? Apelar para a resistência de um Congresso controlado pelo que a crônica chama de baixo-clero, para significar a composição do fisiologismo com o reacionarismo? Do Judiciário, que desrespeita a Constituição e manipula o poder mediante o jogo de liminares concedidas segundo o interesse político da hora? Afinal, que esperar de um Judiciário cujo principal líder é Gilmar Mendes?
Resta-nos confiar na reação popular, na reação dos trabalhadores, na reação da universidade, na reação dos trabalhadores, na constituição de uma frente de resistência ao desmonte do Estado, dos direitos sociais e da soberania, antes que seja tarde, e voltemos à condição pré-Vargas, a de exportadores de produtos agropecuários, de minérios, de petróleo, e a de importadores de tudo.
Se não redescobrirmos o caminho das ruas, a direita, que mede a reação popular, continuará avançando e certamente não se contentará com a condenação de Lula. 
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

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