Ativismo sobre rodas: Por que Salvador ainda não entrou nos trilhos? (Por Ernesto Marques)


Explicar as razões de o Brasil, muitas décadas atrás, ter escolhido transportar suas gentes e riquezas por rodovias, abandonando os trens, é tarefa por demais complexa para os limites deste escrevinhador e de um texto a ser compartilhado num ambiente onde se abominam os "textões". Arriscaria buscar respostas no pensamento do sociólogo Jessé Souza, centrado na herança escravocrata, e não no patrimonialismo, para explicar o comportamento da nossa elite "rapineira", predatória pela própria natureza, sem visão de futuro e sem compromisso com um projeto de nação. Mas o recorte aqui proposto é bem mais limitado, restrito ao transporte público em nossa caótica e apaixonante Salvador. Juntando cacos da história recente da cidade a partir dos laços de família entre o primeiro prefeito da ditadura e o atual, recorro à biologia para arriscar um diagnóstico: a repetida rejeição ao modal ferroviário é uma escolha atávica - hereditária mesmo, em claríssimo português.


A melhor experiência de planejamento urbano da primeira capital do Brasil data dos anos 1940, quando o santamarense Mário Leal Ferreira volta à Bahia, de onde partiu aos 19 anos, recém-formado engenheiro-geógrafo pela Escola Politécnica, para trabalhar na Viação Ferroviária do Rio Grande do Sul. Avançou nos estudos sobre sociologia, engenharia sanitária e urbanismo no Brasil e em outros países. Chegou cheio de conhecimento, prestígio e determinação para mudar as características urbanas de uma cidade então prestes a completar de 400 anos com cerca de 500 mil habitantes, ruas estreitas, habitações precárias e altíssima incidência de tuberculose. Foram longos anos de estudos minuciosos para desenvolver uma proposta absolutamente original, sem recorrer a modelos prontos e consagrados em cidades com características históricas e espaciais bem diversas. Não por acaso, uma das mais importantes avenidas de Salvador, mais conhecida como Bonocô, assim como a fundação municipal encarregada de pensar a cidade, homenageiam o engenheiro Mário Leal Ferreira. 


A equipe multidisciplinar coordenada por ele ouviu a cidade em entrevistas com 4.500 famílias e pensou em tudo - o quase tudo. Mas as avenidas de vale, como o Bonocô, sem as quais já teríamos superado o inferno, em projeto, eram muito mais do que são hoje. Além de melhorar as condições sanitárias, com a modernização das redes de distribuição de água tratada e coleta de esgotos e águas de chuvas, as avenidas projetavam uma solução de mobilidade capaz de suportar o crescimento da cidade sem brigar com seu relevo. Pouco acima das margens dos rios que abriram os vales nos milênios anteriores, trilhos para os bondes e, um pouco mais acima, pistas de grande fluxo para carros e ônibus. Intercalando essas redes de avenidas, muitas árvores para conter o barulho e fuligem dos motores. “Eleito” prefeito pelos coturnos do golpe civil-militar de 1964, ACM teve a oportunidade de executar o ambicioso planejamento coordenado inicialmente por Mário Leal e concluído por Diógenes Rebouças. Em vez disso, mediocrizou o trabalho da equipe do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS). Lançou asfalto onde deveriam estar assentados até hoje os trilhos do ferro-carril (algo como um metrô de superfície) e passou a vida jactando-se de grande modernizador da capital. Foi a primeira recusa ao modal de transporte adotado por Buenos Aires em 1913 - para não falar do sistema de Londres, de 1863, ou do parisiense, de 1900. 


Caçula entre os seis maiores sistemas metroviários do mundo, o de Seoul, capital sul-coreana, nasceu em 1974 e hoje transporta a maioria da população pelos 981 Km das suas 19 linhas. Enquanto os coreanos construíam seu metrô, hoje considerado o melhor do mundo, o ex-governador Roberto Santos e seu secretário de transportes, Wellington Figueiredo, desenvolveram o projeto de um sistema de transporte de massa para integrar a Região Metropolitana quando Salvador tinha pouco mais de um milhão de habitantes. Mais ou menos nessa época os pernambucanos começaram o metrô de Recife e poucos anos depois mineiros e cearenses fizeram o mesmo. 


Autoridade internacional no assunto e professor na mesma Escola Politécnica onde se formou Mário Leal, Figueiredo deixou pronto o projeto do Anel Ferroviário. Homem das ciências e do planejamento, Roberto Santos deixou para o seu sucessor, além do projeto, o financiamento para a obra que teria nos legado outro padrão urbanístico, mas...


Mas ninguém poderia superar o grande modernizador de Soterópolis, e o projeto foi cuidadosamente esquecido em alguma gaveta. “Eleito” governador pelos mesmos coturnos golpistas que o fizeram prefeito, ACM então mandou às favas o transporte ferroviário pela segunda vez. 


Quando o velho cacique elegeu Antônio Imbassahy prefeito, em 1996, tudo indicava o fim do atraso. No Senado, o "home" subjugou o então presidente FHC em parceria com o filho Luis Eduardo presidindo a Câmara. Estava mais forte do que nunca, cacifado para realizar grandes obras, como o tão adiado sistema de transporte de massa sobre trilhos. Mas o projeto foi feito "nas coxas", a ponto de nos envergonhar com o tobogã, justamente na Avenida Mário Leal Ferreira. Inicialmente correria sobre o canal revestido do rio Campinas, mas já com a obra em andamento se constatou a inviabilidade e a alternativa foi construir o elevado. Mas de nada adiantaram a poder politico e a arrogância dos ditos modernizadores da Cidade da Bahia. Por mais de uma década, além da licitação escandalosa motivadora dos embargos do TCU, os soteropolitanos ficaram a contemplar esqueletos de elevados e estações inacabadas pelas janelas dos ônibus lotados, lagarteando pelas avenidas de vale congestionadas justamente por serem um arremedo do que foi meticulosamente planejado pelo EPUCS.
Eis que afinal o metrô de Salvador começa a operar comercialmente, enquanto expande suas duas linhas, mas não sem algumas pedras no caminho. E quem as coloca? Quem? Quem? Um ACM, agora o neto do original. Prefeito legitimado pelas urnas, Neto trava licenças municipais para o avanço das obras, e move montanhas junto com o ex-prefeito Imbassahy, agora ministro do ilegítimo Temer e com seu aliado de primeira hora, ex-ministro Geddel Vieira Lima. Conseguiram financiamento de quase R$ 1 bi para construir uma linha de BRT (ônibus) para ligar o Centro à região da Rodoviária, já conectadas pelo metrô. 


Como se já não fosse bastante, manipula a distribuição das linhas de ônibus atuais e dificulta a integração entre os dois sistemas. E quem perde com o atavismo sobre rodas de um ACM copiando o outro? Os filhos e netos dos trabalhadores que viram a nossa melhor experiência de planejamento urbano ser praticamente reduzida às avenidas de vale sem os bondes, sem as vias expressas e os cinturões verdes que as contornariam, sem os viadutos que integrariam as redes de avenidas projetadas para a nossa vida fluir sem os transtornos a que terminamos por nos acostumar, entre os vales e cumeadas que fazem de Salvador uma cidade singular.


E se você duvida dessa compulsão atávica do príncipe-herdeiro por um modal de transportes de capacidade limitada, barulhento, poluidor e causador de engarrafamentos, veja a propaganda das obras de mobilidade da Prefeitura de Salvador. O neto do ACM que nos negou um sistema de alta capacidade por duas vezes já não tem mais como nos negar um metrô pela terceira vez porque ele já é uma realidade, o povão usa e aprova. 


Mas a cidade dos sonhos do nosso jovem alcaide, lagarteando sobre rodas, com as ruas sempre congestionadas, está ilustrada em uma das suas peças publicitárias onde o metrô foi simplesmente apagado. E o trânsito de carrinhos criados com efeitos de computação gráfica flui velozmente. A Salvador virtual da propaganda do prefeito Neto não tem metrô, mas vai ter um BRT vendido como um grande feito. E nós vamos pagar a conta: a conta da tarifa cara, do sistema ineficiente e do financiamento que comprometerá as finanças do Município por longos anos.


Você pode até construir outra hipótese para o apego ao que o professor Paulo Fábio, autor de um denso trabalho acadêmico sobre o ACM original, chama de modernização conservadora. Eu, meio bobo que sou, prefiro acreditar que o atavismo sobre rodas do neto é apenas mais uma herança.

Por Ernesto Marques.

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