Debruçado sobre nossa aventura entre o fim da Segunda Guerra
Mundial e o término da Guerra Fria, com o suicídio da URSS, Renato Archer deita
luzes sobre a intimidade da república que frequentou como ator privilegiado
(Depoimento Ed. Contraponto, 2006). É didático, por exemplo, no desvendar
o papel de diplomatas e militares na
política, e disserta sobre a adesão
acrítica dos fardados, como corporação, aos projetos geopolíticos dos EUA, em
detrimento dos nossos interesses como povo, nação e país. Trata-se, pois, de
livro precioso cuja leitura ajuda a compreender a tragédia política de nossos
dias.
Militar de carreira (foi capitão para a reserva como de
fragata), secretário de governo no Maranhão, empresário, deputado federal,
ministro das relações exteriores, adversário da ditadura, articulador da frente
ampla (Juscelino, João Goulart e Carlos Lacerda, 1966), ministro da ciência e
tecnologia no governo da nova república, ministro da previdência social,
presidente da Embratel, típico filho da casa-grande, Renato Archer assume o
papel de dissidente oligárquico, e se faz político na contramão dos interesses
de sua origem de classe. Prócer de destaque no movimento nacionalista dos anos
50/60 do século passado, foi cassado e preso pela ditadura de seus pares.
Juarez é o perdedor na lição da história, mas ao fim e ao
cabo estava reduzida a pó a política de energia nuclear de Getúlio Vargas,
concebida como instrumento de
capacitação científica, tecnológica e, por fim, como instrumento fundamental
para nossa industrialização, pensada como meio de nos levar à independência
econômica, antessala da conquista da soberania. Dos tempos de Archer para cá o
país avançou, domina o ciclo completo do enriquecimento do urânio e fabrica,
com tecnologia própria, as ultracentrífugas que tentou importar da Alemanha nos
anos 50. Mas o país permanece sem definição, sem clareza quanto ao que
pretende, caminhando e recuando, “como envergonhado de sua tradição,
credibilidade e competência nessa área estratégica.”
Archer acusa os
embaixadores brasileiros na ONU, a saber, Raul Fernandes, Edmundo Barbosa da
Silva e Vasco Leitão da Cunha, de jamais haverem defendido a política
brasileira de energia nuclear nas negociações com a Casa Branca. Peja o
embaixador Edmundo Barbosa da Silva, servindo no gabinete do presidente da
República (JK), passando ao Departamento de Estado dos EUA - em telefonema no
próprio palácio do Catete - informações sobre documentos secretos da diplomacia
brasileira. Esse mesmo Edmundo Barbosa da Silva é acusado de, ainda no governo Vargas, informar
ao Departamento de Estado que o Brasil estava importando ultracentrífugas da
então Alemanha Federal, levando à apreensão da carga pelos americanos.
O desserviço aos interesses nacionais ocupa os altos
escalões. Renato Archer relata decisão do ministro da Fazenda, Walter Moreira
Salles, conspícuo representante da burguesia nacional, cancelando acordo de
trocas entre o Brasil e a Finlândia, por meio do qual importaríamos papel de imprensa em troca de fornecimento de
café. Alegava o banqueiro-ministro que
tal acordo violava a “liberdade de comércio.” Por consequência, passamos a
importar papel dos EUA e do Canadá, por um preço significativamente maior
enquanto a Finlândia deixou de importar nosso café, passando a fazê-lo da
Colômbia.
Para a grande maioria dos
intérpretes, a preeminência ideológica dos EUA sobre os militares
brasileiros, com as conhecidas e lamentáveis consequências na vida política, se
acentuam após a Segunda Guerra Mundial. Filiado a esta linha, Renato Archer
destaca a política do Pentágono impondo-se como fornecedor praticamente único
de armamentos aos países periféricos, o que ensejava aos EUA tanto o domínio
estratégico-político quanto a preeminência ideológica, ao tempo em que
alimentava o complexo industrial militar denunciado por Dwight Eisenhower em
seu famoso discurso de transmissão da presidência a John Kennedy. O mercado
cativo dos países dependentes assegurava o funcionamento da máquina industrial
e financiava as inovações exigidas pela corrida armamentista.
Dou a palavra a Renato Archer:
“Um dia, o general Segadas Viana, ministro do Exército [na
verdade, da Guerra, a nomenclatura de então] no gabinete Tancredo Neves
[primeiro governo parlamentarista], me telefonou. Eu estava então interinamente
no Ministério do Exterior. Ele me disse:
'Ministro, o professor San Tiago Dantas [ministro das relações exteriores] quer
fechar o meu ministério.' Como? Fechar o ministério? Pergunto eu. 'Ele deu uma
entrevista ao jornal francês Le Monde, dizendo que o Brasil é um país não
alinhado. E o Brasil é um país alinhado na luta contra o comunismo!' Respondi:
“País não alinhado, em nossa terminologia, é um país que não faz parte nem do
Pacto de Varsóvia, nem do tratado do Atlântico Norte, do qual não podemos
participar por motivos geográficos. Nós somos fatalmente não alinhados.'
'Não!', respondeu o general: 'Os americanos estão me dizendo que quem não é alinhado
na luta contra o comunismo não vai receber armas. E nós somos a favor da luta
contra o comunismo.'” (Pp. 86-7). Pois essa era a condição para ser bem visto
pelo establishment da guerra.
A consequência vinha a cavalo: jamais aspirar o país a
dispor de tropas aptas à sua defesa (afinal delegada aos EUA); as importações
não atendiam a encomendas de nosso governo, mas aos interesses do fornecedor, e
assim se limitavam a equipamentos de segunda linha, descartados pela política
de permanente modernização imposta ao Pentágono pela corrida armamentista
levada a cabo contra a URSS. A mesma embalagem acondicionava armas e ideologia,
e nossos fardados ficavam satisfeitos, pois o sonho de todas as armas, desde o
Império, foi sempre cuidar da ordem
herdada da escravatura e do latifúndio. Nossa participação por procuração na
Guerra Fria inventou o anticomunismo, para haver um inimigo interno a combater;
a existência de suposta contestação interna era o pretexto para amplificar o
acesso de nossas tropas a armas de segundo e terceiro níveis tecnológicos.
Archer observa que a política armamentista do grande império
do norte, determinando a dependência estratégica e ideológica dos exércitos
latino-americanos, levou os militares, independentemente de seus governos, a se reunir e a promover a padronização de doutrinas, equipamentos e procedimentos. É
a fonte dos “pronunciamentos” militares, das intervenções, dos golpes de Estado
e das ditaduras que afligiram o continente sul-americano.
Essa dependência ensejou o diálogo direto entre os militares
dos diversos países da região, e a “cooperação” chegou a operar-se mesmo em
confronto com decisões dos governos. Renato conta o episódio de um curso de
doutrinação no Colégio Americano de Defesa (EUA), para o qual o Brasil foi “convidado” a enviar oficiais superiores
e ainda pagar 10 milhões de dólares. O curso foi recusado pelo gabinete (era
ainda o governo parlamentarista), inclusive com o voto dos ministros militares.
Quando a decisão foi comunicada ao general-chefe do Estado Maior das Forças
Armadas brasileiras, nossos militares já
haviam viajado... O fato consumado ficou por isso mesmo, e assim pagávamos, e
continuamos pagando, para formar nossos generais com uma visão política contrária
aos nossos interesses.
Não pretendo oferecer ao leitor o resumo do depoimento de
Renato Archer. Limitei-me a pinçar fatos que me pareceram relevantes, quando,
sob o neoliberalismo negacionista, a educação, a ciência e a tecnologia sofrem
o mais ousado e duradouro ataque de que se tem notícia no país. A ofensiva é
tanto mais grave quanto conta com a ação direta dos militares, que no passado
tiveram papel decisivo em algumas das inovações mais significativas da história
da ciência em nosso país, como a criação
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, hoje
condenado à inanição em face do corte drástico e permanente de seus recursos -
o que, aliás, não é ainda o pior dos males, pois este é a planejada política
predatória do governo negacionista, anti-ciência, anti-conhecimento,
desmontando com desvelo e competência inusitada o sistema nacional de ciência e
tecnologia, investindo contra a universidade pública, cortando bolsas de
estudos, inviabilizando a pesquisa.
Por: Roberto Amaral - escritor e ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
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