Assim, passando pelas sucessivas concessões políticas iniciadas em 2015 a partir de políticas de austeridade fiscal para acomodação das camadas médias descontentes em conjunto com os setores tradicionais da burguesia (financeira, midiática e latifúndiária), viabilizou-se o golpe politicamente em função do derretimento da base social orgânica e fidelizada da esquerda por meio de sua decepção, empobrecimento e desânimo, levando, por fim, já entre 2017 a 2019 à cooptação das camadas populares antes associadas à esquerda pelo fascismo através do fundamentalismo religioso diante do agravamento da crise econômica e a exploração do desespero e terrorismo psicológico pelo apelo da "fragmentação e destruição da família", no qual a familiaridade se torna a única fonte de sustentação da classe trabalhadora ainda mais empobrecida e com a crescente perda da proteção do Estado e o fim dos programas sociais, da seguridade social e dos direitos trabalhistas, bem como o aumento da informalidade, o que gera, por conseguinte, a ideia de salvação emocional e financeira na família mono-nuclear e o aumento do apoio à agenda conservadora (anti-aborto, anti-LGBTQIA+, anti-educação sexual, guerra às drogas, punitivismo e encarceramento em massa).
Essas três fases (2013, 2015-2016 e 2017-2019) podem abrir a uma última e derradeira fase de erros estratégicos, levando a uma derrota histórica: a destruição do legado político construído pela esquerda contemporânea desde os anos 80 com o novo sindicalismo, cujo apoio da classe trabalhadora se desloca da esquerda trabalhista e dos comunistas em direção ao partido de origem operária que ganhou liderança por meio da autoridade política construída ao rechaçar a transição por alto no fim da ditadura e o desastroso e impopular governo de transição apoiado pela esquerda anterior à fundação do PT.
Desse modo, o PT inaugura um novo campo progressista como protagonista dos processos de direção política pela esquerda, arrastando os setores laborais organizados do campo e da cidade em conjunto com as frações minoritárias e médias da burguesia prejudicada pelo setor financeiro, latifundiário e importador nos anos neoliberais da década de 90. Essa composição gerou a viabilidade da chegada ao governo do Estado burguês, permitindo o usufruto de parte do poder político para a implementação das políticas públicas que permeiam o imaginário popular e associam hoje a maioria social a um projeto político capitaneado pela esquerda e que se encontra personificado em Lula por conta de toda essa construção histórica.
Não é "por sorte que ainda temos um Lula" como já li por aí e nem por acaso que precisemos dele nesse personalismo. É fruto de toda essa trajetória que não se origina de recuos apriorísticos ou rebaixamento programático antecipado. Ao contrário, o PT reafirma sua identidade operária que o coloca no patamar de hoje porque no passado foi aquele considerado sectário e infantil, cumprindo àquela época um papel histórico de crítica e alternativa à esquerda e que assumiu a dianteira após os seus críticos perderem a referenciação das massas como resultado dos apoios e das políticas que operaram em prol de governos impopulares feitos em uma aliança acrítica com a burguesia.
Curiosamente, hoje o PT sofre as críticas pela esquerda que ele realizava ontem (é o papel que o PSOL e o atual novo PCB resgatam) e pode cometer hoje o mesmo erro que foi cometido no passado e lhe abriu espaço (é o caso da velha esquerda no MDB, no PDT, antigo PTB e antigo PCB). Porém, caso o PT cometa o mesmo erro, o espaço aberto não será preenchido imediatamente por uma mesma força política à altura do legado construído pelos governos populares e petistas.
Esse erro histórico será a perda da popularidade da esquerda por conta de um governo imobilizado pela sua natureza de composição em um programa recuado no seu princípio fundacional: a aliança com um setor da burguesia representado por um líder ideológico (e não meramente fisiológico) da burguesia financeira, como é o caso de Alckimin, que nos afasta da aliança com as frações médias e minoritárias da burguesia, bem como da pequena burguesia que representam o setor produtivo.
Além disso, a chapa se dissociaria de um programa que reabilite e, sobretudo, mobilize a organização das classes trabalhadoras no campo e, principalmente, nas cidades, por meio da inviabilidade de se defender a revoga das reformas trabalhista e previdenciária, a impossibilidade de arregimentar as camadas médias e populares através da tributação dos mais ricos e a isenção maior aos assalariados. A vitória de Lula com Alckimin representaria assim uma verdadeira vitória de Pirro. Eis que aí não haveria mais um novo Lula, pois ele é quem poderia gerar a decepção, a frustração e desânimo na classe trabalhadora após sucessivas derrotas e uma nova oportunidade que não teria honrado com as expectativas de melhora de vida do povo por conta das amarras que uma aliança paralisante lhe custou.
A dependência do Lula pela esquerda sempre foi muito mal compreendida, a meu ver. Para além da velha questão do grau de ausência de politização das massas, o nível de abandono do trabalho de base com a institucionalização de sua militância, a burocracia organizacional e esses velhos apontamentos que são feitos em relação aos governos petistas, é necessário também lembrar que o fenômeno do culto à personalidade é comum em países subdesenvolvidos, tal como elucida a frase de Emiliano Zapata: "um povo forte não precisa de um líder forte ". A força vem da organização, mas há sempre as lideranças pioneiras que apontam essa necessidade e ficam inscritas na memória de um povo muito sofrido como é a história do povo brasileiro e latino-americano. Assim, a fortaleza de Lula é gigante pela gratidão, reconhecimento e identificação do povo pela sua história de realizações e façanhas, mas não é indestrutível, principalmente se para dentro dela é arrastado um cavalo de Troia.
Uma candidatura como a de Lula deve e precisa encarnar agora uma campanha calcada não somente na "união nacional pela democracia" e "liberdades democráticas" como nas Diretas ou "incluir o pobre no orçamento" e "declarar guerra a fome" em 2002, pois, apesar dos paralelos, estamos em 2022 e "a história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa".
As comparações com Prestes, Getúlio e Stalin é truque de farsantes, pois esses não mais vivem e nós não vivemos um pós guerra, mas sim uma pós pandemia em um mundo globalizado com o crescimento da extrema direita se aproveitando da adequação da esquerda mundial à ordem burguesa e o abandono de sua roupagem antissistema.
É chegada a hora, portanto, de uma grande guerra política e cultural por valores incrustados na pauta do povo, ou seja, que a conta dessa crise seja paga pelos bilionários sendo taxados, que o Estado invista pesado para geração de empregos com os bancos públicos, que a gasolina seja subsidiada e atenda ao mercado interno, que o povo pobre e negro tenha sua mão de obra qualificada pela expansão escolar e universitária com maior aporte à educação pública, que o SUS receba ainda mais recursos com o furo do teto de gastos, a injeção de enormes quantias de dinheiro no sistemas públicos de saúde, que haja a reformulação do aparato repressor do Estado explorando o descontentamento crescente do povo com os massacres, a violência policial, a denúncia ao charlatanismo e os escândalos de religiosos que se locupletam explorando a fé do povo. Enfim, não é momento de ceder ao desespero e se esquecer do que é mais importante de ser defendido agora. Não é hora de culto à personalidade, ao patriotismo partidário e a paralelismos históricos profundamente anacrônicos para dar sentido pseudo-racional ao que nada mais é do que cansaço e trauma de tantas derrotas ainda muito recentes.
Acontece que ceder à precipitação, à antecipação de recuos é um equívoco enorme e isso vem sendo uma constante, como já se manifestava desde quando queriam abandonar Lula pelo Haddad mesmo com as vitórias judiciais pela anulação de suas condenações que começavam a se expressar como resultado da luta pela reabilitação de seus direitos políticos.
Agora, querem antecipar um recuo em prol de Alckimin para incluir na chapa aquele que legitimou a perda dos seus direitos políticos ao afirmar que não comandava um partido político de dentro da prisão. Esse cenário de confusão, imediatismo e tremenda imprudência camuflado de pragmatismo e pseudo-genialidade de realismo político levará a uma derrota histórica que não durará 7 anos como foi o ciclo da esquerda apeada do poder desde 16. É possível afirmar que para surgir um novo Lula e melhor que Lula, que poderia ser chamado de Boulos, Gallo ou quem quer quer seja um novo líder da classe trabalhadora no futuro, esse processo custaria décadas como foi desde 64 até o surgimento do PT em 80, passando enfim para sua chegada ao governo em 2002.
Vejam aí a responsabilidade daqueles que acusam de irresponsabilidade os que se preocupam e denunciam uma chapa composta por alguém com laços profundos com a Opus Dei, instituição de grande conspiração da burguesia internacional e que já afirmou que Lula colhia o que plantava ao receber tiros em sua caravana por fascistas, além de ter convocado o povo às ruas para derrubar Dilma, bem como esteve atrás do aparato repressor nas jornadas de 2013 com denúncias de infiltrados das polícias (P2) nas manifestações para direcionar os atos contra o governo federal e o uso da guerra híbrida em interesses internacionais de espionagem promovida pelo imperialismo estadunidense, o que foi revelado nas mensagens interceptadas da Lava Jato. Para completar, sua chegada à vice seria resultado de vinganças e traições contra antigos aliados. A velha máxima sobre confiança política sempre vale: "A política ama a traição, mas abomina o traidor". E quem é traído pode querer trair. Lula é idoso e já teve câncer. O que mais é necessário dizer?
É bom se atentar aos erros. Ninguém aqui quer falar "eu avisei". Porque se esse for o único trunfo dos que estavam certos, ou seja, terem avisado, de nada adiantará longos anos para consertar algo evitável depois de tantas lições valiosas que a História escancarava, mas que o desespero, a precipitação, a imprudência, a arrogância e a prepotência fizeram questão de ignorar.
Por: Alberto Barna.
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