Enquanto Carmen Lucia discursava na abertura do ano Judiciário, do lado de fora colegas magistrados protestavam por aumentos salariais. |
O Judiciário concorre para o perigoso esvaziamento da
democracia representativa e se transforma em instrumento de insegurança
jurídica.
A velha direita pelos seus jornalões, e esses pelos seus
editoriais e colunistas, revela-se, assim de repente, assustada com sinais de
desobediência civil que seus sismógrafos estariam captando nas hostes da
oposição e com o que identificam como ‘ameaças à ordem jurídica’
Em ambos os casos trata-se de puro cinismo, pois nossa
gárrula imprensa está comprometida até o gogó com todas as violências à ordem
constitucional impostas pelos golpes militares e os golpes de Estado não
militares (todos de direita), dos quais foi parte decisiva e beneficiária, como
demonstra a história do maior conglomerado de comunicação do país.
O comentário ficaria por aqui se, com esse pano de fundo e
atendendo a essa pauta, a ministra Carmem Lúcia, presidente do Supremo Tribunal
Federal e do Conselho Nacional de Justiça – cuja função é realizar o controle
da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos
deveres funcionais dos juízes – não tivesse escolhido como tema de seu
discurso, na abertura do ‘ano judiciário’ a defesa corporativa do Poder
Judiciário, isentando-o das criticas que vem recebendo, em um crescendo, pela
sua politização e partidarização, por agir como se Poder Moderador fora,
intervindo nas atribuições dos demais poderes, legislando mesmo, a partir, até,
de decisões de juízes de piso.
Enquanto a ministra perorava no plenário da Casa, ao lado do
que ainda se chama de ‘demais autoridades da República’ (todas em graus
diversos respondendo a processos criminais por corrupção), lá fora, em frente
ao Tribunal, em ato significativo da crise ética em que o país está engolfado,
um magote de colegas magistrados e procuradores, com faixas, cartazes, gritos e
conclamações, cegos diante das agruras da sociedade brasileira, protestavam por
mais vantagens pecuniárias e aumentos salariais.
Sem se darem conta, os amotinados e amotinadas de gravata e
salto alto, que, com aquele ato, ilustravam uma das críticas da sociedade,
incomodada com o monturo de vantagens, penduricalhos e mais isso e mais aquilo
que faz de magistrados e procuradores príncipes de um funcionalismo público que
teve seus reajustes salariais suspensos pelo governo federal.
Proclamou a ministra-presidente: “Pode-se ser favorável ou
desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar
reformá-la, pelos meios legais e nos juízos competentes. O que é inadmissível e
inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”.
Ora, a ministra, que já lecionou Direito Constitucional,
sabe que é direito do súdito resistir à opressão legal, porque nem sempre o que
é legal – e a legalidade depende do poder reinante – é legítimo.
Porque a legitimidade decorre de vários intervenientes a
começar pela legitimidade do órgão editor. Muitos dos que ainda estão vivos
resistiram, por considerá-la ilegítima, à ordem legal da ditadura (que o STF e
o Poder Judiciário de um modo geral subsumiram) e essa resistência foi o aríete
que rompendo com a lei da masmorra abriu caminho para a democratização.
Ora, ministra-presidente, foi a desobediência civil de Mahatma
Gandhi que levou a Índia à libertação do jugo colonialista. E os brasileiros de
um modo geral e os mineiros de forma ainda mais orgulhosa festejam a memória do
Alferes porque heroicamente enfrentou o direito ilegítimo de D. Maria, a louca.
Ora, o STF ‘agrava a Justiça’ quando adota decisões
inconstitucionais, e as mais evidentes são aquelas que ofendem o equilíbrio dos
poderes, e invadem o campo da competência do Executivo ou do Legislativo.
O Supremo não tem competência para impedir a nomeação de um
ministro de Estado, nem tem competência para destituir o presidente de uma Casa
legislativa, nem para suspender, por decisão monocrática, a eficácia do indulto
de Natal decretado pelo presidente da
República, mesmo sendo ele o sr. Michel Temer.
O STF renuncia à sua imparcialidade, ofendendo à sua própria
legitimidade, quando julga com dois pesos e duas medidas a mesma questão,
quando, de novo em decisão monocrática, impede, sob a alegação de ‘desvio de
finalidade’ a nomeação pela presidente Dilma Rousseff do ex-presidente Lula,
para o cargo de ministro Chefe da Casa Civil, e, de novo por decisão
monocrática, não vê esse desvio quando o atual locatário do Jaburu converte em
ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência (ostensivamente protegendo-o
com o manto do foro privilegiado) o assessor Moreira Franco, ameaçado por
processos na primeira instância. E nenhuma dessas decisões segue para uma Turma
ou para o Plenário.
O STF desserve à Justiça quando esvazia o Plenário e seus
onze ministros se transformam em onze tribunais, mais poderosos que o coletivo
que não se anima a revisar as decisões
monocráticas de ministros que não
dialogam entre si (alguns se odeiam), e cujas sentenças brigam entre si ao
sabor de interesses e oportunismos muitas vezes negociados nos bastidores e nos
palácios, bem como disputas de vaidades sem fundamento.
O STF desserve à Justiça quando permite que seus membros
descumpram seu regimento e manobrem com ‘pedidos de vista’. Diante de um
julgamento no qual fora vencido, o inefável ministro Gilmar Mendes segurou por
mais de dois anos a decisão que impedia o financiamento das eleições por
empresas privadas.
Por nada haver sido feito
para coibir tal abuso, o ministro Dias Toffoli, que logo mais assumirá a
presidência do STF, pediu vista em julgamento já praticamente decidido (8 votos
contra um em um coletivo de onze), sob a bizarra alegativa de que o Congresso
iria disciplinar a matéria.
E assim a pauta do STF é manipulada por liminares
monocráticas e pedidos de vista, ao arrepio de seu Regimento e, principalmente,
ao arrepio dos interesses da sociedade que reclama por uma Justiça mais
transparente, menos lerda e menos envolvida com os interesses que subjazem às
causas sob seu crivo.
O STF não tem competência para revogar o princípio
secular da presunção da inocência e rasgar o inciso LVII do artigo 5º da Constituição (“ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”), violência que, aliás, dependeu do voto de minerva da
ministra presidente.
E o Poder Judiciário não pode transformar em traficância
processual o pleito eleitoral (o momento mais significativo de uma democracia
representativa), e muito menos transferir para seu âmbito, seja um juiz
primário, sejam três ou mais desembargadores, a competência e a
legitimidade que pertencem com
exclusividade à soberania popular, poder que, aliás, está acima de todos os
demais, dele decorrentes.
Um dos mais graves problemas
do STF foi apontado por Sérgio Sérvulo em seu Recurso extraordinário,
cuja leitura ouso sugerir. Trata-se do fato, observa o constitucionalista, de o
Supremo considerar-se exonerado de
fundamentar juridicamente as suas decisões; com isso, para decidir, ele deixa
de invocar a Constituição e a lei, e seus julgamentos passam a ter
fundamentação política: a conveniência e a oportunidade.
Esse desvio faz escola no juizado de primeira instância, com
decisões sem o anúncio de seu amparo legal, fundadas em suposições, em
conjecturas políticas – em ‘convicções’, em suma.
Desserve à Justiça, e desgasta a imagem do Poder Judiciário,
o voluntarismo e a incontinência verbal,
fora dos autos, de ministros e
juízes de piso, antecipando
opiniões (e votos) sobre matérias que
mais tarde julgarão; desserve à Justiça dos amores da ministra o protagonismo
judicial, coletivo e individual, cada julgador adaptando a lei à sentença que
decidiu prolatar, por vezes mesmo antes de examinar os autos, como fez o
desembargador presidente do TRF-4 apreciando a sentença do juiz Sérgio Moro
condenatória do ex-presidente Lula, e como faz usualmente, o ministro Gilmar
Mendes, o mais boquirroto de todos.
Desservem à Justiça os conceitos públicos do inexcedível
ministro Gilmar Mendes proferidos, sem reação da Casa, sobre seus colegas
Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux.
O mais doloroso, porém, é ter que registrar desvios éticos
pretensamente absolvidos pelo mandato legal que não cura o ato eivado de
ilegitimidade. Como justificar que o juiz Moro, morando em Curitiba em imóvel
próprio, casado com uma juíza, receba auxílio moradia, tendo salário mensal
final (a soma dos salários com os penduricalhos) em torno de 54 mil reais
(dados de 2015)?
Como explicar que a esposa do meritíssimo ministro Marco
Aurélio Mello, que mora em amplo apartamento funcional, receba (diz o Estadão
de 4/2/2018) auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais? Sandra de Santis, a
esposa, é desembargadora no TJ-DF.
Como explicar que o juiz Marcelo Bretas, que cuida dos
processos da Lava Jato no Rio, e sua esposa, que também é juíza, recebam
auxílio-moradia, quando moram juntos, em apartamento próprio no Rio
de Janeiro?
Quanto recebe de auxílio-moradia o fiscal da Funai deslocado
para o interior da Amazônia?
Há razões para explicar o abismo cavado entre o povo e o
Judiciário e uma dentre muitas é a dificuldade de o cidadão compreender e
aceitar práticas que sua ética, a ética da média do brasileiro comum, não
aprova: os altos salários (altíssimos em face do que percebem os demais
funcionários públicos federais), as vantagens, os auxílios diversos, auxilio
moradia e auxílio livro, auxílio representação, concessão de diárias sem
critério expresso, e mais isso e mais aquilo. Lamentavelmente, atrás de todas
essas distorções está o colendo STF.
Há três anos o ministro Luiz Fux, de novo uma decisão
monocrática, de novo concedendo liminar, estendeu o escabroso auxílio moradia
(para quem ganha mais de 30 mil reais e muitas vezes mora na mesma cidade) para
todos os desembargadores, todos os juízes do país, todos os procuradores do
Ministério Publico da União e todos os promotores dos ministérios públicos
estaduais.
Duas questões relevantes: a imoralidade do privilégio e a
gastança anual de centenas de milhões de reais por ano. Mas não é só isso.
Pergunto à ministra presidente: por que até hoje, passados três anos,
repetimos, não foi julgado o mérito da liminar? O que se espera para que ela
entre em pauta?
Assim, por tudo isso e pelo mais que não se contêm em um só
artigo, o Poder Judiciário, sob a liderança do STF, concorre para o perigoso
esvaziamento da democracia representativa e se transforma em instrumento de
insegurança jurídica.
Dias piores virão.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
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