Temer e Pezão no sábado 17. O que ele quer com a intervenção? |
É preocupante a utilização das Forças Armadas em uma
operação com nítido caráter político-eleitoral.
Não se discute o estágio de descalabro a que chegou o poder
público no Estado e na cidade do Rio de Janeiro – desgovernados e assaltados
por administrações ineptas e corruptas. Muito menos está sob questão a
violência urbana, um dos indicadores do caos social, mas que a ele não se
cinge. Consabidamente, o Rio de Janeiro vem sendo de longa data governado/assaltado
por uma súcia levada ao poder e chefiada pelo ex-governador Sérgio Cabral em
sociedade com o então presidente da Assembleia Legislativa, ambos, aliás,
atualmente trancafiados.
Na verdade, essa crise – moral, política, administrativa –,
pervade todas as instâncias do poder público e se entranha no aparelho
repressor; o assalto se dá mediante a promiscuidade de políticos-meliantes com
um empresariado corrupto, de que são símbolos as máfias das empreiteiras e do
transporte público na capital fluminense. Esse tumor que infecciona o Rio de
Janeiro – mas que se espalha fractalmente por todo o País – só recentemente
começou a ser sarjado. É o legado das administrações do PMDB/MDB, o partido do
presidente da República.
O que está sob análise é o caráter da intervenção federal (a
primeira sob o regime da Constituição de 1988), o significado e as
consequências da utilização das Forças Armadas em operação com nítido caráter
político-eleitoral. Há que apontar a inocuidade da operação, cessados os
efeitos da pirotecnia. Cedo o fogo se apaga e a dura realidade se impõe. A
população desesperada que no primeiro dia aplaude a chegada de seus
“salvadores” logo se voltará para a rejeição, frustrada em sua esperança. Foi
assim na Maré: após um ano de “ocupação” e gastos estimados em 600 milhões de
reais, os militares se retiraram e a comunidade voltou à sua rotina de miséria
e violência.
O que salta à vista é a irresponsabilidade e má-fé do
governo federal, empregando as Forças Armadas numa operação de marketing que,
correndo todos os riscos possíveis, tem por evidente propósito salvar a
insolúvel impopularidade do presidente e justificar a derrota da perversa
reforma da Previdência.
As intervenções anteriores, para justificar a atual, foram
submetidas a alguma avaliação? Há algum relatório que possa ser posto à
disposição da opinião pública?
Sabe-se de algum estudo do Estado-Maior do Exército? Sabe-se
ao menos de alguma avaliação do poder público estadual ou do Ministério
Público? Não. A resposta é o silêncio – e o mistério.
A intervenção de agora, além de desprezar a avaliação das
experiências anteriores, se instala, assim de repente, sem planejamento e sem
anunciar propósitos, objetivos e metas. Não há planos, não há ideias novas. Não
diz se vai enfrentar a raiz dos problemas – a miséria, a crise fiscal, o
tráfico internacional de drogas e armas – ou se novamente será um paliativo
para atender à opinião pública que gosta de pantomima. Demagogicamente, o
governo insiste nessa conversa fiada segundo a qual os problemas estão nos
morros e só neles e nas guerras de facções. Invadindo as muitas Rocinhas e
prendendo ou matando bandidos desavisados tudo voltará à paz que jamais
existiu?
De onde vem a droga e quem a importa? Já se perguntaram os
estrategistas improvisados ou de escola? Como elas entram? Idem para as armas.
Alguém neste país acredita que são os varejistas de nossos morros quem negocia
com os carteis internacionais?
Quem vai fechar nossas fronteiras ao comércio ilegal? Que fizeram
até aqui a Polícia Federal e o Exército para coibir o tráfico de armas? Quem
está vigiando nossas fronteiras, quem guarda nosso litoral? A Marinha, a
propósito, por que não consegue monitorar a Baía de Guanabara, a grande porta
(escancarada) de tóxico e armas?
O fato objetivo, e sabido por toda a gente, é que o Rio de
Janeiro (que não produz cocaína nem fabrica armas) é um entreposto da droga
que, originada da Bolívia e da Colômbia, principalmente, daqui é reencaminhada
para os EUA e a Europa. O que fica no Rio, e não é pouco, é o pagamento do
pedágio. Sem destruir esse mecanismo, tudo não passará de populismo policial,
velha, cediça e inócua tentativa de enxugar o gelo. Ou tentar tapar o sol com a
peneira.
Estamos, portanto, em face de intervenção puramente política
que uma vez mais se vale das Forças Armadas para obter respostas políticas
diversionistas. A justa sensação é, pois, que as tropas do Exército estão sendo
manipuladas, com o risco de emergirem conflitos sociais.
Nas ruas, elas se esquivarão de enfrentar as mobilizações da
sociedade? Ora sua simples presença é uma ameaça ao movimento social, às ações
políticas de massa, às greves que se acumularão na resistência ao governo
Temer.
Mesmo limitada à Segurança Pública, a intervenção fará o quê?
Enfrentará as máfias dentro das polícias civil e militar? Prenderá policiais
civis e comandantes da PM corruptos? Combaterá as fontes de alimentação do
tráfico? Fechará a Baía de Guanabara ao contrabando de armas e ao ingresso de
drogas? Formará e treinará novos policiais honestos e cumpridores do dever,
para substituir as gangues que se associaram ao crime? Resolverá tudo isso em
dez meses?
As muitas presenças militares na cidade, sabe-se, jamais
tocaram na raiz dos problemas. No curto prazo, as tropas nas ruas, seus
blindados circulando, sempre oferecem, à primeira vista e nos primeiros dias, a
sensação de segurança pela qual tanto anseiam as populações assustadas, mas
trata-se tão-só de analgésico, e seu efeito é curto. Passadas a ‘festa’ e as
encenações teatrais as forças militares retornam à caserna (de onde não
deveriam sair) e tudo volta a ser como dantes no castelo de Abrantes. Foi assim
nas muitas experiências anteriores; será assim, lamentavelmente, nessa de agora
que, desgraçadamente, poderá não ser a última e, renovando-se ou ampliando-se,
tomar características mais largas e mais perigosas.
A intervenção militar no Rio de Janeiro, além de burra e
ilegítima, partindo de um governo ilegítimo e invulgarmente corrupto, é decisão
perigosa, temerária e irresponsável, pois põe em xeque o papel das Forças
Armadas, ao expô-las no cumprimento de tarefas para as quais não se destinam
nem estão preparadas. Treinadas para a guerra, adestradas para destruir e
matar, não estão afinadas nossas tropas e nenhum tropa em todo o mundo com as
funções policiais que exigem, como prioridade, serviços contínuos de
inteligência e treinamento para o relacionamento com a população.
Os contingentes mobilizados para essas ações, ademais, são
majoritariamente formados por jovens soldados, muitos mal-saídos dos cenários
da violência, onde residem, garotos que optam pelo serviço militar rejeitado
pela classe-média para poderem bem se alimentar e nutrir a expectativa de uma
formação profissional. Falta-lhes tudo, e falta-lhes principalmente treinamento
específico e experiência. Os generais comandantes ficarão nos quarteis,
comandando. Ou dando entrevistas desnecessárias.
O fato objetivo é que o Exército vem sendo chamado a ocupar
as ruas do Rio desde a Eco-92, e de lá para cá jamais operou milagre, porque
milagres não existem. Nada se alterou do quadro dramático, e a simples
intervenção de agora põe de manifesto o fracasso dos anteriores chamamentos. O
lamentável é que não se tenha aprendido com a experiência.
Ou essa intervenção é apenas um teste do que pode vir, na
continuidade desse regime de exceção jurídica? Afinal, as razões que a
justificam estão presentes em quase todas as unidades da Federação, como por
exemplo São Paulo, Ceará, Espírito Santo, Sergipe e Roraima..
É inescapável o risco de manipulação eleitoral e, dele
resultante, o risco de contaminação partidária das forças federais.
Talvez mais grave seja pensar em processo eleitoral da
magnitude e da importância das eleições de 2018 (quando os otimistas esperam
dar fim à crise que desgasta o país desde 2015), com um ou mais Estados da
Federação sob intervenção militar, medida tão drástica que sob sua vigência a
Constituição proíbe a simples tramitação de emenda constitucional. Daí a jogada
dos “espertalhões”.
E por que”‘intervenção”, se o ainda governador do Estado do
Rio de Janeiro concorda com a presença dos militares, e prazerosamente
cede-lhes o comando das funções de Segurança, o que significa um governo em
condomínio com o ministério da Defesa?
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas,
refletindo o que deve ser o sentimento da tropa, tem considerado essas
incursões como procedimento “desgastante, perigoso e inócuo” (Estadão,
17/02/2018), por tudo o que é óbvio, inclusive pelos riscos do contato das
tropas com o crime.
O que, então, justifica essa intervenção apressada?
A hipótese mais corrente entre as que procuram justifica-la,
é que se trata de manobra diversionista, cortina de fumaça para encobrir o
fracasso rotundo do governo em face da reforma previdenciária. É a melhor
hipótese. Mas usar as Forças Armadas para isso é irresponsabilidade!
Outra hipótese – e
todas revelam a manipulação das Forças pelo governo de fato – diz tratar-se de
preparativo para, perdida a guerra da previdência, levar a cabo a razia
privatista, voltando-se prioritariamente para a privatização da Eletrobrás, do
petróleo e do gás, além da Casa da Moeda. Ora, a Eletrobrás, tanto quanto a
Petrobras e a Casa da Moeda, têm sua sede no Rio de Janeiro. A presença dos
militares, com seus tanques e metralhadoras nas ruas, inibiria a ação dos
movimentos sociais. E se houver choques e surgirem vítimas fatais, como
ocorreram em 1988, quando soldados do Exército invadiram a Companhia
Siderúrgica Nacional para de lá desalojar os trabalhadores em greve?
A quem interessa usar o Exército como força de repressão?
Por fim, e certamente o mais grave de tudo, é a simbologia
dessa intervenção que parece anunciar aos desavisados a disponibilidade dos
militares intervir para consertar “o caos produzido pelos civis”.
Corrigenda – Em artigo anterior informei que a esposa do
juiz de piso Sérgio Moro era igualmente juíza. Engano. Ela é advogada. Mas continua aética a percepção, pelo juiz,
do imoral ‘auxílio moradia’
Por Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
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