Ao mesmo tempo em que nasce um
projeto de democracia popular, julgamento no TSE expõe a miséria do Poder
Judiciário.
O processo político de nossos
dias deve ser festejado pelo seu caráter mais significativo, que é a retomada
das ruas pelas massas organizadas, indicando uma salutar decisão de participar
da reconstrução republicana. Esse processo supera o voluntarismo das “jornadas
de junho” de 2013, marco da mudança qualitativa da recente participação popular
na vida política, e denuncia a falência da democracia representativa, esta que
ainda praticamos, abrindo espaço para novas formas de democracia participativa,
já previstas no pacto de que resultou a Constituição de 1988.
Evitando de novo o espontaneísmo
e o engodo, com os pés na realidade e sem ilusões relativas ao quadro de
desafios, devemos destacar a unidade dos movimentos popular e sindical, de que decorrem
seguidas ações de massa reunindo trabalhadores, estudantes, camponeses e
intelectuais, como as recentes mobilizações em Brasília, no Rio de Janeiro
(Copacabana) e em São Paulo (ato de artistas e intelectuais no Largo da
Batata).
De todos, porém, o movimento
mais importante foi sem dúvida a vitoriosa greve de 24 de março. Ela registra o
despertar do movimento sindical para a luta política, o que só foi possível
graças à maturidade a que parece haverem chegado as centrais sindicais,
superando suas divergências e disputas, poucas ditadas por razões ideológicas.
Enquanto em todo o País surgem
grupos de ação os mais diversos, consolida-se a convicção de que a política de
frente ampla é a grande alternativa para barrar a desconstrução nacional e
realizar um projeto de democracia nacional-popular. Neste sentido é do maior
significado a instalação, em Brasília, na Câmara dos Deputados, da Frente
Suprapartidária pelas Diretas Já, constituída de parlamentares filiados às mais
diversas siglas e comprometidos com as mais diversas correntes de pensamento.
A política de frentes
populares e de esquerda, transitando, como núcleos, para frentes políticas as
mais amplas nos termos do atual espectro político-ideológico, começa, assim, a
dar seus frutos. É a pedagogia da práxis. Nesse projeto, as frentes políticas,
como a Frente Povo sem Medo e a Frente Brasil Popular, desempenharam papel
crucial reunindo partidos, centrais sindicais e movimentos sociais, e com eles
ajudando a construção da unidade do campo popular.
De outra parte, a cada dia os
órgãos da representação política, e à frente de todo o Congresso Nacional, mais
se afastam da soberania popular, exaurindo sua legitimidade. Causa espécie a
surdez parlamentar em face da voz das ruas, pois, penduricalho cartorial do
‘mercado’ (papel que o deputado Rodrigo Maia atribui à Casa que preside),
Câmara e Senado se esmeram no afã de destruir o que ainda nos resta de Estado
social e nação. De outra parte, chefiado
por um presidente ilegítimo, o Executivo se afunda em sua desordem moral, que
parece sem fim.
Não é mero acaso a prisão de
mais um ex-ministro de Michel Temer; não é irrelevante surpreender o ainda
presidente da República viajando em jatinho da família Batista; não é
curial o ainda presidente ser flagrado
como intermediário de propina entre a construtora OAS e o PMDB; não é menos
denotativo do verdadeiro “mar de lama” que afoga os timoneiros do Palácio do
Planalto a prisão de mais um auxiliar do ainda presidente Temer, o ex-deputado
Rodrigo Loures, que passará para a história como o “homem da mala” de Michel
Temer.
Legislativo e Executivo são,
hoje, ilhas, olimpos, casamatas isoladas do povo, de costas para a nação,
contra a qual traficam. Daí, e trata-se de um só exemplo, o avanço das reformas
trabalhista (real revogação da CLT) e previdenciária; daí a insensibilidade
diante do pleito da sociedade por eleições diretas, oportunidade última de
salvar as instituições, mediante o sopro da legitimidade decorrente da
soberania do voto.
Não temos razões fáticas para
ter ilusões relativamente ao Poder Judiciário, instituição por natureza e
composição conservadora. Lamentavelmente o ministro Gilmar Mendes não é uma
figura isolada.
A grande imprensa, no Brasil
um partido de direita, com projeto próprio, impôs o monopólio do pensamento
único e se transformou em poderosa trincheira da luta ideológica, fazendo o
jogo do capital rentista.
Dando sustentáculo à
ilegitimidade desses poderes ergue-se a coalizão antinacional que nos governa
com o apoio majoritário do poder econômico, aferrado às “reformas” cobradas
pelo capital rentista, qualquer que seja o quadro político ou institucional.
Para nossas classes dominantes, democracia e legitimidade são abstrações
toleradas somente quando postas a serviço de seus interesses.
Essas observações querem dizer
que temos uma longa jornada à frente.
No lançamento do Plano Popular
de Emergência, proposta da Frente Brasil Popular para “restabelecer a ordem
constitucional democrática, defender a soberania nacional, enfrentar a crise
econômica, reverter o desmonte do Estado e salvar as conquistas históricas do
povo trabalhador”, João Pedro Stédile advertiu que à espera dos movimentos
sociais estava uma “longa maratona cheia de obstáculos”, porque o Fora Temer,
embora indispensável, é apenas o ponto de partida de uma grande luta que apenas
se inicia.
Pois não se trata, tão só, de
trocar um presidente ilegítimo por outro, um sátrapa por outro, um títere por
outro, Francisco por Chico, mas substituir o atual impostor por um delegado dos
interesses populares, devolvendo à Presidência a legitimidade de que carece o
atual inquilino. Daí o pleito pelas Diretas Já, a fórmula possível nas
circunstâncias para a eleição de um representante das forças populares,
comprometido com a defesa dos interesses dos trabalhadores, os interesses das
grandes maiorias.
Só um presidente legitimado
pelo voto popular tem condições de interromper a desconstrução do Estado e da
nação, a destruição da economia nacional, o desemprego e a recessão. Só um
governo alimentado pela legitimidade pode retomar o desenvolvimento com
distribuição de renda e a defesa nacional.
Só um presidente legítimo e
apoiado nos movimentos sociais poderá, como assinala o Plano Popular de
Emergência da Frente Brasil Popular, promover “as reformas estruturais
necessárias para romper com o modelo de capitalismo dependente que tem
produzido, entre outras chagas, o empobrecimento dos trabalhadores,
especialmente das trabalhadoras e da população negra, injustiça social extrema,
perda de independência e recessão econômica, ao mesmo tempo em que concentra
renda, riqueza e propriedade nas mãos de um punhado de barões do capital”. O
Fora Temer é um ponto de partida.
TSE
No momento em que escrevo,
quinta-feira 8, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) conclui a terceira sessão
de julgamento da chapa Dilma-Temer, em ação interposta pelo PSDB logo após a
derrota de seu candidato a presidente, em 2014.
Pela sua relevância – mas
principalmente em face de consequências sabidas e temidas –, o julgamento foi
transformado em espetáculo televisivo, com todos os ingredientes (inclusive
torcida), e nesses termos está sendo tratado pela imprensa, ávida de audiência.
Até aqui há por destacar, por contrastantes, de um lado, o comportamento sério
e decoroso do ministro relator, Herman Benjamin, e, de outro, o nada
surpreendente comportamento grosseiro, prepotente e aético do ministro
presidente, o inefável Gilmar Mendes, conhecido como líder do governo no STF e,
agora, no TSE, assumindo sem disfarce o deplorável papel de advogado de defesa
do mandato de Michel Temer, mas advogado privilegiado, pois com direito a voto.
Enquanto o julgamento
prossegue, com a sede do TSE sob o cerco de 1.200 policiais militares (de qual
ameaça o autoritarismo está pretendendo proteger nossos ministros?), as dúvidas
sobre o juízo final vão se desfazendo e cresce a convicção de que, como de regra,
o julgamento será uma vez mais político, partidariamente político, porque nossa
Justiça julga politicamente, como todo Tribunal, aliás, à mercê de todos os
grupos de pressão; o que nos distingue dos demais poderes judiciais é que o
nosso, admitindo todas as pressões, só rejeita a pressão popular.
Assim sem povo, e contra o
povo – um excedente em nossa História desde a Colônia –, se escreve no TSE e
adjacências mais um capítulo de nossa saga. Não estamos longe, pois, de mais um
acerto de cúpula impondo à sociedade o concerto dos interesses do poder
econômico, nomeadamente os interesses dos rentistas da Avenida Paulista,
liderados pela Fiesp e suas congêneres.
Enquanto o TSE se reúne, em
sua bolha, imune aos gritos e aos reclamos do povo, no mundo real é preso mais
um ex-ministro de Temer, o ex-deputado Henrique Eduardo Alves, e o ainda
presidente da República surge como intermediário de propina da Construtora OAS,
cujo dono, ainda preso, se fez delator da Lava Jato.
Esse julgamento, no qual
seguramente os interesses político-partidários sobrelevarão sobre razões
jurídicas e fáticas, depois de esviscerar as entranhas do processo eleitoral,
está prestando grande serviço ao País ao pôr a nu a miséria do Poder
Judiciário.
Por Roberto Amaral é escritor
e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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