A proposta reacendeu o debate sobre os limites
constitucionais da anistia e até que ponto ela pode ser usada como ferramenta
política. Afinal, é possível conceder anistia a quem cometeu crimes contra a
democracia? Quais seriam as consequências jurídicas e institucionais dessa medida?
Neste texto, analisamos essas questões à luz do Direito Constitucional, da jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal e da opinião de juristas renomados.
A anistia é uma forma de extinção da punibilidade, prevista
no artigo 107, inciso II, do Código Penal, que ocorre por meio de lei aprovada
pelo Congresso Nacional. O artigo 48, inciso VIII, da Constituição Federal
determina que cabe ao Poder Legislativo conceder anistia. A anistia se
diferencia do indulto, que é concedido pelo Presidente da República, e da graça,
que é individual. Ela é ampla, geral e tem efeitos retroativos — apaga o crime
e seus efeitos penais, como condenações e cumprimento de penas.
Historicamente, a anistia foi utilizada como instrumento de
pacificação nacional. O exemplo mais marcante foi a Lei da Anistia de 1979, que
perdoou tanto os agentes do regime militar quanto os opositores políticos
perseguidos durante a ditadura. No entanto, o uso desse instrumento carrega
forte conteúdo político e simbólico, e por isso deve ser cuidadosamente avaliado
sob a ótica dos princípios constitucionais.
Quais crimes não podem ser anistiados?
Apesar de ser prerrogativa do Congresso, a anistia não é
ilimitada. A própria Constituição Federal estabelece vedações expressas.
Segundo o artigo 5º, inciso XLIII, são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia
os crimes hediondos, o tráfico de drogas, a tortura e o terrorismo.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem interpretado que
a anistia não pode ser aplicada a crimes contra o Estado Democrático de
Direito, especialmente quando configuram tentativas de golpe ou ruptura
institucional. Esse entendimento se consolidou a partir dos julgamentos dos
envolvidos no 8 de Janeiro, nos quais a Corte destacou o caráter grave e excepcional
das condutas praticadas — com ameaça direta às instituições republicanas, ao Estado
de Direito e ao próprio funcionamento da democracia.
O advogado criminalista Dr. João Valença, do escritório VLV
Advogados, destaca que, embora o Congresso Nacional possua competência
legislativa para conceder anistia, há limites constitucionais que não podem ser
ignorados, sob pena de inconstitucionalidade da norma. “A Constituição de 1988
é muito clara ao vedar a anistia para crimes que ameacem a ordem democrática,
especialmente quando se trata de tentativa de golpe ou abolição do Estado Democrático
de Direito. A proposta de anistiar os envolvidos no 8 de Janeiro, portanto, esbarra
diretamente nessa cláusula de proteção. Ainda que haja vontade política no Congresso,
qualquer lei que contrarie esse princípio poderá ser questionada e
eventualmente anulada pelo STF, em respeito à supremacia da Constituição”,
afirma Valença.
Além disso, o jurista alerta para os efeitos simbólicos e
práticos da anistia nesse contexto: “A anistia, quando mal utilizada, pode
representar um recado de impunidade, incentivando novas ações violentas e
colocando em risco o pacto democrático. O Brasil precisa fortalecer suas
instituições e não recuar diante de ataques ao Estado de Direito. Qualquer
passo em falso pode ser interpretado como tolerância à ruptura institucional.”
Anistia como ferramenta política: interesses em jogo
A defesa da anistia por parte de lideranças bolsonaristas
tem um caráter marcadamente político. A proposta não visa apenas aliviar a
situação de manifestantes, mas também proteger figuras de maior expressão que
estão sob investigação ou julgamento, inclusive o próprio ex-presidente, que
responde a inquéritos no STF e pode ser responsabilizado por incitação aos atos
de 8 de Janeiro.
Essa movimentação também se articula como estratégia
eleitoral, mirando o eleitorado que considera as punições excessivas e acredita
na narrativa de que os envolvidos foram “patriotas”. No entanto, a politização
da anistia pode comprometer a seriedade do sistema de Justiça, sobretudo se for
usada como moeda de troca ou como forma de pressionar o Judiciário.
Quais os riscos institucionais de conceder essa anistia?
Do ponto de vista jurídico, a aprovação de uma lei de
anistia para os atos de 8 de Janeiro, caso venha a ocorrer, certamente será
questionada no Supremo Tribunal Federal, que poderá declará-la
inconstitucional. Isso causaria choque entre os Poderes, comprometendo a harmonia
institucional prevista no artigo 2º da Constituição.
Além disso, especialistas alertam que perdoar crimes contra
o Estado de Direito pode enfraquecer o princípio da responsabilização, gerando
um efeito cascata perigoso: se a democracia pode ser atacada sem consequências
reais, outros grupos extremistas podem se sentir encorajados a repetir atos
semelhantes no futuro.
Conclusão
A proposta de anistia para os investigados e condenados
pelos atos de 8 de Janeiro precisa ser analisada com responsabilidade e
profundidade. Embora a Constituição permita ao Congresso legislar sobre o tema,
essa competência está limitada por princípios fundamentais da ordem democrática.
Crimes contra o Estado de Direito não podem ser tratados como meras infrações políticas
— são ataques à própria base da convivência republicana.
O comentário do advogado Dr. João Valença reforça que o
Estado deve permanecer firme na defesa da Constituição, da democracia e da
estabilidade institucional. Conceder anistia a atos golpistas significaria não
apenas um recuo legal, mas também um enfraquecimento simbólico das instituições
que sustentam a República.
No fim, a verdadeira pacificação nacional não virá com o
perdão incondicional, mas com o fortalecimento da Justiça, do respeito às leis
e da proteção intransigente ao Estado Democrático de Direito.
Por: Gabriela Matias - jornalista, redatora e assessora de
imprensa, graduada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
INSTAGRAM: @gabrielamatiascomunica
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