- Aristides Lobo (Diário Popular, 18/11/1889)
Implantada por um golpe militar, a República brasileira
sucede um Império anacrônico, sem pretender romper com sua ordem
econômico-social, fundada no escravismo e na lavoura. Com ela sobrevive a
sociedade patrimonialista, excludente, profundamente desigual e conservadora
que hoje nos espanta. Despida de republicanismo (doutrina que jamais chegou ao
povo e era desconhecida pelas tropas que desfilaram pelas ruas do Rio de
Janeiro em 1889), a república nascente conservaria as duas características
básicas da monarquia, a cuja natureza reacionária seus líderes não se opunham
de fato: a ausência de povo e de representação, fragilidade que a perseguirá
por quase um sesquicentenário, o tempo de sua vida até aqui. A reforma, na
realidade, jamais foi objetivo dos oficiais golpistas; pretendendo derrubar um
gabinete malquisto por eles, terminaram destronando o imperador longevo – pelo
qual, aliás, o país nutria reconhecida
empatia.
A República, um projeto das elites que não cogitou do
concurso do povo, se impõe para que, mudando-se o regime, em nada fosse
alterado o mando: o Brasil agrário da monarquia sobreviverá na República da
lavoura exportadora do café, herdeira das exportações de madeira, açúcar e
ouro, matriz da sociedade exportadora de grãos, carne e minérios in
natura. No império e na república,
continuamos cumprindo o papel de fornecedores das mercadorias que o mundo rico demanda. Para cumprir com
seu destino chega descasada da democracia, exatamente um século após a matriz
cunhada pela revolução francesa. Nos estertores do século XIX continuávamos
sendo um país cuja política desconhecia a participação popular: sem povo, sem
partidos, fizéramos a independência e construíramos o império; sem povo
deveríamos fazer a república sereníssima. Entre nós, a res publica é capturada
pelo interesse privado. Somos conservadores até com relação à
classe-dominante: herdeira da
casa-grande, é a mesma desde o Brasil-Colônia.
Contra o unitarismo monárquico, no entanto abraçado pelos
jacobinos que articularam o golpe, a constituinte fundadora da República
(1891), dominada pelos representantes da ordem descaída, optou pelo federalismo
defendido pelo latifúndio e pelo escravismo, que, assim, sem serem frustrados
pela História, como veríamos, esperavam conservar o mandonismo local, aquele
sentado na grande propriedade. A terra continuava vencendo. A República vai
consolidar-se como o regime da hegemonia das oligarquias, que só conheceria seu
declínio com o golpe de 1930, sobretudo com o Estado Novo (1937-1945) que, por
sinal, investirá contra o federalismo. E hoje, ainda lutando pela consolidação
do nosso limitado processo democrático, podemos registrar dois fracassos
rotundos: o da República, jungida aos interesses privados, e o do federalismo,
inviabilizado pelos escandalosos desníveis regionais, caldo de cultura de uma
crise em gestação.
Mal saído do escravismo, cujas marcas conservaria até os
dias que correm, o país dava os primeiros passos na aventura capitalista preso
aos interesses da terra dominantes desde a colônia: a República era a solução
das elites para a crise política agudizada pela Abolição. Na República, como no
império, sob os traficantes de escravos e senhores de engenho ou sob o cutelo
dos “coronéis”, o país continuaria sem projeto, sem rumo, preso às forças do
atraso que obstaculizavam a industrialização. Numa história recorrente, o
antigo regime colonial se projeta no império agrarista, que por seu turno
sobreviveria numa república indiferente à manifestação da soberania popular,
eis que dominada por um sistema eleitoral escandalosamente fundado na fraude.
Como falar de República em sociedade pervadida pela desigualdade social e a
exclusão das grandes massas da cidadania? Em vez da ruptura que abriria as
portas ao progresso, impõe-se a conciliação que mantém a ordem do passado. Daí
a indiferença com a qual foi recebida a fratura política aparentemente tão
radical. Para a classe-dominante, a transição de regime não passaria da simples
troca de um imperador vitalício por um presidente eleito pro-tempore. No fundamental, tudo continuaria como dantes no quartel de
Abranches. E assim continuou.
O 15 de novembro, movimento das elites sem raízes na
organização social, foi, não obstante suas consequências institucionais e
políticas, uma quase ópera-bufa, encenada por atores que, no seu conjunto,
ignoravam o papel que lhes cabia desempenhar. O mais deslocado de todos era o
velho marechal, retirado da cama de enfermo para se transformar em herói. A
cena contempla momentos burlescos.
Convencido, após muita relutância, de que deveria atender ao
chamamento político de seus comandados, posto em sua farda de gala com o
auxílio do ordenança, Deodoro monta em um cavalo que lhe é trazido por um
miliciano, atravessa a pequena distância que o leva ao Campo de Santana e, sem
espada, mão direita levantada, saúda como saudavam os comandantes assumindo a
tropa: “Viva o Imperador!”, a que a tropa (atendendo a um reflexo condicionado,
como de hábito) ecoou: “Viva, para sempre!”. O capitão José Bevilaqua,
positivista e seguidor de Benjamin Constant, narra o episódio a que
assistiu: “Chega o momento supremo da proclamação. O general
Deodoro hesita ainda ante nossas instâncias, a começar pelo Dr. Benjamin,
Quintino, Solon, etc., etc. Rompemos em altos e repetidos vivas à República! Abafamos
o viva ao Senhor D. Pedro II, ex-Imperador, levantado pelo general Deodoro, que
dizia e repetia ser ainda cedo, mandando-nos calar! Por fim, o general,
vencido, tira o boné, e grita também: Viva a República! A artilharia com a
carga de guerra salva a República com 21 tiros!” (Vide MENDES, R. Teixeira.
Benjamin Constant. Rio de Janeiro. Ed. do Apostolado Positivista do
Brasil,1913. pp. 356-7).
Implantado, por um golpe militar levado a cabo pela
oficialidade do exército sediada na então capital do Império, repita-se, o novo
regime é a avenida pela qual trafegam rupturas constitucionais e irrupções
militares que chegam aos nossos dias. Nasce com o golpe de 1889, a que se
seguem o golpe frustrado de Deodoro (1891), o golpe de Estado de Floriano e a primeira
ditadura republicana, conhecida como “ditadura da espada”, e de permeio contabiliza duas revoltas da
armada (uma contra Deodoro e outra contra Floriano, que assumira já
confrontando a constituição republicana recém promulgada) e o levante das fortalezas
de Santa Cruz e Laje (1892). Consolida-se o militarismo que havia sido atenuado
pela assembleia constituinte (formada por representantes da lavoura, quase
todos vindos do antigo regime) e influenciada pelo liberalismo de Rui Barbosa.
Mas era só o começo de uma série de crises políticas e
intervenções militares que parece não ter fim: duas cartas outorgadas (1937 e
1967); duas longevas ditaduras (a de 1930-1945, com o intermezzo constitucional
de 1943-1937 e a de 1964-1985); após os levantes das fortalezas de Santa Cruz e
Laje (1892) a revolta da armada contra o
presidente Floriano (1893), após a “ditadura da espada” (1891-1894), seguida
pelo massacre, pelo “exército pacificador
de Caxias”, dos camponeses de Canudos (1896-7) e o massacre, pela Marinha, dos
heróis (previamente anistiados) da Revolta da Chibata (1910); três levantes militares (1922, 1924 e
1935); a insurreição paulista de 1932; o
putsch integralista de 1938; o golpe militar de 1945 que derrubou o Estado Novo
que outro golpe militar havia implantado em 1937; o golpe de 1954 que depôs
Getúlio Vargas; a tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino
Kubitscheck (1955); o golpe militar para garantir a posse dos eleitos (o 11 de
novembro de 1955); os motins da aeronáutica contra o governo JK (Jacareacanga
em 1956 e Aragarças em 1959); a tentativa de golpe para impedir a posse de João
Goulart (1961), o golpe parlamentar de 2016 e o continuado projeto de golpe
sustentado pelos militares no governo Bolsonaro que se mantém de pé até hoje,
podendo ameaçar a posse de Lula e acompanhar seu governo.
Como visto, a preeminência sobre a vida civil e a ruptura da
ordem democrática são a marca indelével da caserna insubordinada na vida
republicana, e assim ela chega aos nossos dias, valendo-se das armas – que a
nação lhe entrega para a defesa da soberania – para promover seguidos atos de
desestabilização institucional contra os interesses do país.
Na raiz de tantos males a impunidade, o outro nome da
“conciliação” que permeia uma história dominada pela cada-grande.
À insolência das notas dos atuais comandantes das forças
militares do Estado brasileiro sobre o processo eleitoral, coordenadas pelo
ainda ministro da defesa, soma-se recente carta de antigo comandante do
exército, missivista do golpismo desde sua agressão à autonomia do STF. De qualquer forma é estranho que, privado da
fala e dos movimentos, possa ditar e escrever uma declaração pública em que
estimula a insurreição contra a soberania do voto e trata como patriota uma
escória que vai à porta dos quartéis pedir mais um novo golpe.
A questão republicana mais urgente – sem dúvida o desafio
político-institucional de maior relevo – é a erradicação do militarismo a que
tanto deve a tragédia nacional. Não se trata, tão-só, da efetiva subordinação
do soldado ao poder civil. Trata-se de seu rigoroso enquadramento disciplinar.
Ou seja, da repressão à sua permanente insubordinação, tanto mais repugnante
quanto se opera mediante o uso ilegal da força contra pessoas e instituições
desarmadas.
É chegada a hora de colocar o guizo no gato. Este, o desafio
republicano.
***
Um medalhão na Big Apple – Com uma fala abjeta proferida num
convescote empresarial em Nova York, aonde ministros do STF (irregularmente
sobre-remunerados por empresa privada especializada em lobby) foram flanar e
falar de temas brasileiros, Dias Toffoli, exemplarmente medíocre como advogado
e juiz, conseguiu ofender a memória de dois países ao mesmo tempo: a Argentina
e o Brasil – a cuja Constituição, democrática, deve respeito e obediência
funcionais. Como dizia o inesquecível Barão de Itararé, “de onde menos se
espera, daí é que não sai nada, mesmo”. Ou sai porcaria.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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