- Manuel Domingos Neto, autor de O que fazer com o militar(anotações para uma nova defesa nacional)
Nossa formação de cinco séculos registra a supremacia da
conciliação sobre a ruptura, o reino da ordem estabelecida que se contrapõe ao progresso,
tão bem e tão insistentemente denunciado por José Honório Rodrigues. A busca do
novo, a revolução – que quase todos os povos experimentaram na base de seu
processo histórico – foi sempre, entre nós, tratada como erva daninha. As
reformas permitidas foram tão-só aquelas destinadas a preservar a ordem
dominante, a mesma há 500 anos. As
mudanças são aquelas necessárias para que tudo permaneça como está,
materialização da síntese consagrada por Lampedusa.
Não foram poucos os intelectuais orgânicos, comprometidos
com seu povo, que lutaram pela construção de um país desenvolvido e de uma
sociedade feliz, desde José Bonifácio e Joaquim Nabuco. No século passado,
Darcy Ribeiro, que lograria reunir a intervenção intelectual à ação pública,
reconheceria sua frustração. Já no fim da luta, reconheceria haver fracassado
em tudo o que tentara na vida, ressaltando, contudo: “Os fracassos são minhas
vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Muitos dos vencedores estão hoje em Lisboa no doce farniente
promovido pelo empresário Gilmar Mendes.
O líder revolucionário, o que abre as portas para o novo,
além de condutor de massas, é agente social, condicionado em seu papel político
pela interação entre a consciência de classe e a necessidade histórica, ditadas
ambas por circunstâncias que não são de sua escolha, senão aquelas “legadas e
transmitidas pelo passado”, como ensinou Marx, mas que não lhe cassam o papel
de sujeito: se o indivíduo não escolhe as circunstâncias nas quais atuar,
escolhe seu papel diante delas. De Gaulle e Pétain, em 1940, em face da mesma
história (a derrocada militar e moral da França) optaram por papéis opostos.
Um, epítome da resistência, o outro vassalo do invasor. Entre nós, diante da
renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o marechal Odylio Dennys intentou um golpe
militar e o governador Leonel Brizola liderou o país na defesa da legalidade.
Todos, ao tempo em que se escolhiam, interferiam no processo histórico, como
Getúlio Vargas em 1954. Com o seu suicídio, o presidente adiou por uma década
a ditadura militar que se estenderia por
21 anos.
O líder, quando
também pioneiro, revolucionário ou reformista, não é mais simplesmente aquele
que em diversos momentos conduz as grandes massas, ou por elas é amado, mas o
raro personagem que aponta rumos e é seguido mesmo quando o ponto de chegada é
desconhecido. Esse líder não caminha ao lado do povo: este é que o sente ao seu
lado na jornada a que foi convocado. Visionário e estrategista, pode ser um
profeta; quando interfere na moldagem do futuro, é um revolucionário. Há de ser
sempre um gauche na vida: não entende que o indivíduo tenha de se adaptar ao
mundo – às condições impostas a sua existência pelas circunstâncias – e por
isso forceja por adaptar o mundo às suas
necessidades, ou às necessidades de seu sonho.
A história republicana é parca de líderes e reformadores, e
a pasmaceira nacional, abalada pelos levantes militares de 1922 e 1924, e ainda
subjugada pelo pacto agroexportador que controlava o poder desde a ascensão de
Prudente de Moraes, conhece a fratura imposta pelo levante que a historiografia
consagraria como “Revolução de 1930”, uma insurreição inter-oligárquica que, no
entanto, seria responsável pela modernização do Estado brasileiro.
O que se segue é história consabida. Dela cuido apenas da
emergência, a partir desse evento, daqueles nomes que me parecem ser hoje os
principais líderes-estadistas dessa fase republicana, e me limito a apenas
três, na ordem cronológica de atuação: Getúlio Vargas, o primeiro grande líder
republicano e ainda o mais destacado de quantos tivemos; Juscelino Kubitschek,
o visionário construtor de Brasília, e Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro
líder da classe operária a chegar à presidência.
Vargas é o mais longevo, o mais amado e o mais temido em seu
tempo, e, sem dúvida o mais contraditório de quantos estadistas conhecemos, de
quantos líderes tivemos, à direita e à esquerda, nesses 134 anos de uma
república permanentemente por fazer-se e uma democracia formal temerosa da
emergência do povo como sujeito político. Dele podemos dizer tratar-se de
esfinge ainda indecifrada, tais as paixões que desperta, passados quase 70 anos
de sua morte e 93 anos da tomada do poder, que exerceu por 18 anos (respeitado
o interregno de cinco anos entre a queda do “Estado novo” e as eleições de
1950), presidindo uma ditadura e um governo democrático, apeado de ambos por
insurgências levadas a cabo por militares antes aliados.
Dele poder-se-á dizer que viveu suas circunstâncias no mais
puro sentido orteguiano, dominando-as, até ceder à última investida,
aparentemente impossibilitado de agir como agia, lembrando a famosa frase de
Lutero: “aqui me acho e não posso fazê-lo de outra forma”. Ficou para a
história como modernizador do estado, líder trabalhista e “pai dos pobres”,
nacionalista, combatente pela soberania nacional.
Se para Getúlio a política era “a arte do possível”, para JK
torna-se o instrumento de uma determinação. Era visionário e profeta. Prometeu
“50 anos em cinco”, e em menos de cinco transformou um descampado árido em meio
ao Cerrado goiano na capital da república, incorporando o Oeste à política e à
economia do país. Sem ferir a ordem democrática, enfrentou duas intentonas
militares e um sem-número de tentativas de impedimento.
Lula se destaca, de início, como o primeiro líder nacional
oriundo do proletariado, que até sua emergência pedia emprestado à classe
dominante seus defensores. Trata-se de fenômeno político extraordinário em país
que não conseguiu purgar suas origens escravocratas nem livrar-se do domínio
político-ideológico da casa-grande, que sobrevive sob o império da Faria Lima e
do agrobusiness. Seu sucesso, uma vitória da classe operária que o formou, é
tanto mais significativo quando consideramos que o país que o elegeu mais uma
vez em 2022, fraturado pela ascensão do protofascismo, é ainda aquele no qual
“a pirâmide do poder assenta sobre o vértice e não sobre a base”, como
denunciava José Bonifácio, o moço, no século XIX.
O ex-metalúrgico é o único emigrante das secas, o único não
doutor, general ou capitão, e o primeiro
brasileiro a eleger-se três vezes presidente da república. Hoje é o primeiro
líder da América do Sul com audiência mundial.
É exatamente seu papel de líder mundial que quero pôr em
relevo, pois o destaque de seu desempenho deriva da qualidade de suas
intervenções mais recentes, como as de
Paris, diante de uma multidão que lotava o Campo de Marte, defronte à Torre
Eiffel, e sobretudo a que fez no dia seguinte, durante a reunião de cúpula
convocada por Macron, quando ressaltou a prioridade do combate à fome, a
responsabilidade dos países ricos no enfrentamento à crise climática e a
falência das instituições de Bretton Woods.
O Brasil, graças ao seu presidente, é hoje um ator global
que anuncia demandas, e pode ser a voz do Sul na cobrança de uma nova ordem
mundial, superando alinhamentos automáticos, recusando o dictat das grandes
potências, ao tempo em que pôe na mesa das negociações nossos interesses, que
jamais se confundem com os interesses dominantes, os quais dão o tom da
política internacional.
Anunciamos um país e um continente que não têm partido na
disputa dos EUA com a China na tentativa que lhes interessa de preservar a
hegemonia comercial e bélica, quando a humanidade aspira à construção de uma
ordem baseada na paz, no multilateralismo e na convivência civilizada entre as
nações e os povos. O fortalecimento dos blocos regionais é conditio sine qua
non, e nossa lição de casa começa com o
fortalecimento e a ampliação do Mercosul, a recuperação de organismos como a
Unasul e o fortalecimento do BRICS.
A frente externa, todavia, pouco se sustentará se não contar
com o apoio da retaguarda nacional – caserna e empresariado –, que jamais se
identificou com as iniciativas brasileiras na execução de uma política externa
independente, vale dizer, sem subordinação de ofício aos interesses dos EUA,
sede do grande capital brasileiro e fonte das doutrinas que dominam os corações
e mentes dos militares brasileiros.
Mas é preciso concertar o discurso do governo. Em convescote
em Lisboa, ao qual não deveria ter comparecido, o bom ministro Flávio Dino, que
boas esperanças tem despertado, decide-se por excursionar pela política externa,
e nesse passeio bate de frente com nossa diplomacia, que, sob orientação
presidencial, persegue independência ante o conflito hegemônico promovido pelos
EUA em face da emergência chinesa. Dino denuncia, como risco para a “democracia
ocidental”, o deslocamento de poder para a Ásia. Para nosso ministro, os países
asiáticos não “vivenciam” modelos assentados na democracia ocidental. Antony
Blinken assinaria embaixo.
Lula, esperamos, poderá cacifar internamente os efeitos de
sua diplomacia presidencial, mas, lembra o professor Manuel Domingos, ela “é
desconcertante para os que querem continuar mandando em tudo”. Poderá, pois,
estar aprofundando contradições internas.
O tempo, juiz de tudo, nos dirá.
***
Esbórnia republicana – Em artigo que precisa ser lido nas escolas do país (“Lisboa é uma festa”, O Globo, 29/06/2023), posto que o mesmo não se pode esperar de certos escalões do poder, a jornalista Malu Gaspar retrata a nanoestatura moral e cívica de nossa classe dominante. Quem não o leu, ainda, que o leia, e passe adiante.
O negócio da exclusão – O Brasil, não se ignora, tem a
terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China. O
perfil dos nossos apenados também é conhecido: eles são majoritariamente jovens
pretos pobres, de baixa escolaridade. Ou seja, aqueles de quem o Estado
brasileiro, estruturalmente perverso, só se lembra na hora de prender ou matar.
Nesse contexto é pelo menos discutível um governo de mudanças, historicamente
comprometido com a justiça social, colocar a União como fiadora da construção
de presídios privados, em parceria com os estados. Que dados, extraídos das
experiências conhecidas, são vistos como positivos? Quem irá fiscalizar essas
potenciais usinas de mão-de-obra barata?
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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