O "Fora Bolsonaro" é o que deve unir as forças populares



O que é “Fora Bolsonaro”? Uma palavra de ordem, que é a soma das particularidades de uma situação política objetiva, transformada em proposta de ação. É a chave do que fazer. Ela resume análise e leva à ação;  é didática, por ser autoexplicativa. Quando Lênin proclamava “Todo poder aos sovietes”, ele tanto interpretava e explicava o processo histórico russo naquela altura, quanto transformava essa interpretação em comando para ação prática das massas revolucionárias: a tomada pacífica  do poder. Mas, ao mesmo tempo levava à organização das forças insurgentes e as mobilizava para as tarefas revolução.

No crepúsculo da ditadura de 1964-1985, a palavra de ordem “Diretas já” -- que unificou as grandes massas naquela que talvez tenha sido a maior mobilização popular da história republicana brasileira --, implicava não só a retomada do direito popular à escolha de seu presidente, como também se inseria no embate  pelo  fim do regime militar.  Seu corolário era  a redemocratização.

A boa palavra de ordem resume teses.

A consigna “O petróleo é nosso”, nos anos 50 do século passado, sintetizava em poucas palavras os pleitos que vinham de décadas anteriores,  enfunados pela saga nacionalista que tomava conta  da academia e dos debates populares: o desenvolvimento econômico como base  da soberania nacional; o monopólio estatal do petróleo e a criação da Petrobras  como uma necessidade. Sem petróleo não haveria indústria, e sem indústria não teria como o país cogitar de sua independência. A questão ainda não foi superada.

Tudo isso estava inscrito naquelas poucas palavras e, ainda hoje, quando o governo de Bolsonaro e seus fardados comandantes investem contra a Petrobras, distribuindo com os rentistas da Faria Lima e os procuradores do império seus principais ativos,  sabe a memória nacional que, para além de graves atentados à maior empresa brasileira, o que está em jogo é o desenvolvimento nacional. Esse sentimento, no leito da saga nacionalista, é o que anima ainda hoje a defesa da Eletrobras, da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e dos Correios, as próximas  presas anunciadas pelo falido “Posto Ipiranga”.

Essas considerações vêm a propósito do “Fora Bolsonaro”, que a muitos parece inconsequente quando o capitão dispõe de sólida maioria parlamentar e conta com a proteção  de um delegado do Centrão na presidência da Câmara dos Deputados - o que lhe oferta a segurança de absoluta impunidade. Com o “Fora Bolsonaro”, porém, uma vez mais estamos diante de uma síntese de projetos políticos, indicadora de uma ação  concreta. Para além da remoção do perigoso delinquente, a palavra de ordem grita um Não! rotundo ao projeto protofascista que pretende sobreviver independente de seu porta-estandarte; é um clamor contra o neoliberalismo e, portanto, indica uma tomada de posição em defesa da economia nacional e dos interesses dos trabalhadores. De fácil compreensão, como as grandes sínteses, trata-se de palavra de ordem que orienta os militantes dos partidos de nosso campo e o movimento social. E tem, ainda, o condão de unificar as forças populares (ou, de pelo menos tentar...) facilitando a intervenção política numa contingência de difícil mobilização popular,  quando essa mobilização se faz necessária e inadiável. É, por fim, possibilitando o debate, um instrumento de politização das massas, a tarefa-desafio das condições atuais do processo social.

Para tais efeitos é irrelevante, hoje, a medida das possibilidades de efetivação do impeachment; cumpre aos desdobramento da campanha que a palavra de ordem incita criar as condições favoráveis. A campana pelas Diretas não levou à aprovação da emenda Dante de Oliveira pelo Congresso Nacional (em abril de 1984), é certo, mas  nem por isso pode ser dito que foi derrotada, pois (como a defesa da anistia) se transformou em poderoso aríete contra o regime que tombaria  em 1985 ao dar um rumo comum à ação das diversas forças (um extenso caleidoscópio político-ideológico) que enfrentavam a ditadura.

O “Fora Bolsonaro” pode não levar ao impeachment, o que seria lamentável, mas sem nenhuma dúvida contribuirá para o combate ao governo que aí está e à defesa do processo democrático,  nosso objetivo-fim,   mediante a mobilização popular com vistas a garantir as eleições de 2022, ainda mais ameaçadas com os fatos que se desdobram desde a noite do último 6 de setembro, marcado pela ameaça de invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, pelas milícias bolsonaristas aparelhadas pelo agronegócio.

De lá para cá não ocorreram  mudanças substanciais no quadro político, e, quaisquer que sejam as aparências,  o bolsonarismo manterá sua guerra contra as instituições.

Mais do que um recuo tático do delinquente (useiro e vezeiro na arte de morder e assoprar para morder de novo), o que vimos no  dia 9/9  foi um “freio de arrumação” ditado pela casa-grande, senhora dos cordéis que regem os movimentos dos supostos atores  de nossa enferma república. Não cogita a Faria Lima do destino da democracia, mobilizada tão-somente pelo receio de que a turbulência política possa ameaçar seus sagrados interesses. Do acordão anunciado com pompa e circunstância, a cujo concerto não estiveram ausentes os fardados mais engalanados, sabe-se das partes nele notoriamente envolvidas, mas desconhece-se como as prendas e as prebendas, os avanços e os recuos foram dados, recebidos e concedidos, negociados e trapaceados. Aparentemente,  os togados, antes abespinhados, se deram por satisfeitos, e  o dito será tido por não ouvido.  O óbvio ululante é que em rodada de mesa na qual  Michel Temer, o perjuro, desembaralhou e distribuiu as cartas, é impossível pensar num jogo sem um mínimo, que nesse caso deve ser um máximo, de velhacaria.

Quaisquer que tenham sido as apostas e os pagamentos, os ganhos e as perdas, o certo é que a traficância terá desconsiderado o interesse público, essa figura de retórica do discurso da classe dominante. Vencedora foi  a ordem da conciliação prussiana que caracteriza nossa história: os acordos de cúpula, tramados à socapa contra os interesses nacionais. A trampa, desta feita, é a prorrogação do bolsonarismo (com ou sem o capitão), que, escancaradamente (e até aqui impunemente) forceja a derruição da ordem democrática. Para os eternos donos do poder, tudo vale a pena quando o objetivo é  preservar a política neoliberal que destrói a economia nacional, desemprega os trabalhadores, privatiza o Estado, aumenta a pobreza e a fome. Tragédia para a qual o capitão  conta com a mesma súcia de apoios de que desfrutava no dia 7 de setembro: os fardados engalanados, o sistema policial, os interesses do capital internacional, os medos da banca financeira, a maioria do Congresso e considerável sustentação popular, de uma massa excitada no limite da patologia e do crime.

A manutenção do poder é o ponto de arrimo dessas forças, e sua tradução imediata é a incolumidade  do atual mandato presidencial,  seja salvando-o  do impeachment reclamado pelas ruas,  seja retirando de pauta a cassação da chapa capitão-general, acusada de fraude eleitoral. Se o capitão se revelar competitivo, as eleições poderão ser garantidas; para tanto  o presidente precisa desfazer-se das  ameaças de decretação de sua inelegibilidade, face ao extensíssimo rol de crimes de responsabilidades, já objeto de apuração.

A direita, cujo isolamento ficou patente no fracasso de suas manifestações do último domingo, dia 12 de setembro, procura a alternativa de uma “terceira via”, com a qual também trabalham o  "PIB" e seus jornalões. É parceira da extrema-direita no projeto de inviabilizar a alternativa eleitoral de centro-esquerda tentando colocar no mesmo balaio Lula e o presidente celerado. O ódio à esquerda e a Lula faz a ponte entre a Faria Lima, o Departamento de Estado dos EUA e os generais,  e pode ensejar, até, a neutralização do delinquente. Os empresários podem alegar a defesa de interesses reais no projeto neoliberal. Dos militares não se tem explicação, senão subalternidade ideológica, servida de oportunismo. Esta é a marca do golpe de Estado institucional, no qual a aliança da japona com a toga nos fez mergulhar em 2016.

A nação jamais conhecerá a ata da tramoia do dia 9, mas é evidente que o elemento unificador do encontro de interesses   é o veto (expressão da caserna) a uma alternância substantiva de governo, como seria tomada a eleição de Lula ou de qualquer quadro à esquerda.

O “Fora Bolsonaro” responde igualmente a esta contingência. A unificação do movimento das forças populares parte do combate ao atual sistema e se completa na defesa da ordem democrática e das eleições de um candidato de centro-esquerda. Faz a batalha de 2021 para assegurar-se de seu papel em 2022. Nada obstante as condições políticas favoráveis (nacional e internacionalmente) que presidiram as eleições de 2002, o governo Lula enfrentou sérias dificuldades de sustentação, principalmente em 2005. Desses percalços não o livraram as concessões à direita e ao sistema financeiro. Nenhum concessão, porém,  salvaria o governo Dilma, impedida de governar no segundo mandato e finalmente deposta numa maquinação comandada por dentro do governo pelo seu comandante do exército (gal. Villas Bôas)  e pelo seu vice-presidente, o articulador e principal escrivão da carta  levada para a assinatura do capitão. Não se pense (e principalmente não pensem Lula e o PT) que  a história terminou. Subestimar o adversário é, na política como na guerra, um erro geralmente  fatal. 

O “Fora Bolsonaro” de hoje, com o capitão no planalto ou fora dele, é, como ponto de partida, o chamamento das forças populares à defesa da democracia; na continuidade, abrirá caminho a uma candidatura de centro-esquerda, à sua vitória eleitoral e posterior sustentação no governo. Só um grande movimento de massas poderá pôr cobro à preeminência da farda sobre a vida nacional, impor a ordem democrática e salvaguardar os interesses nacionais.

O “sectarismo” da esquerda... Minha querida amiga Denise Rotenburg (do Correio Braziliense) acusa de sectários os militantes do PT e do PSOL porque não foram às ruas, no domingo último, bater palmas para a intolerância da direita que, entre outros insultos, expunha um boneco do ex-presidente Lula fantasiado de presidiário e encangado com o delinquente paranoico.

Allende – Há 48 anos, no dia 11 de setembro de 1973, as tropas do general Pinochet bombardeavam o Palácio de la Moneda. Com Salvador Allende morria a democracia chilena e se instaurava uma das mais pérfidas e luciferinas ditaduras latino-americanas.

Por: Roberto Amaral - escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.

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