Em 1961, uma vez mais no rigor da ordem constitucional, e
ainda atendendo a demanda de generais insubordinados, o Congresso Nacional muda
o regime político do país, instaura o parlamentarismo, e capa os poderes do
presidente da república, mediante simples emenda à Constituição
presidencialista de 1946. O contorcionismo era a justificativa para permitir a
posse do vice-presidente João Goulart, chamado ao planalto pela renúncia de
Jânio Quadros, e impedido pela intentona dos ministros militares.
Na vida política-institucional brasileira, legalidade e
ilegalidade são, como se vê, formulações ideológicas a serviço do poder, que
não conta em suas bases com as vozes da soberania popular. Congresso e poder
judiciário são seus parceiros, atentos a esse papel de guardiães da ordem que
mantém o mando da casa-grande.
Não é sem razão, pois, que, mesmo os golpes grosseiramente
ilegais, levados a cabo manu militari, como os que instituíram as ditaduras de
1937-1945 e 1964-1985, consolidadora da preeminência da caserna sobre a vida
civil - esta que chega aos nossos dias como arcaísmo histórico apenas
explicável pelo atraso político-representativo -, foram recepcionadas pelo
poder judiciário, de onde deriva o
diploma da legalidade que nos preside.
A história presente
registra a forma de “golpe de Estado permanente” ou “continuado”, a experiência
que se instaura com a insurreição parlamentar de 2016, consagrada em sessão do
Senado Federal (homologatória de decisão da Câmara) dirigida, nos termos do
rito constitucional, pelo presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski. À
cassação (dentro dos ritos da legalidade) do mandato da presidente Dilma
Rousseff, seguiu-se a posse de seu sucessor constitucional, o vice-presidente
da república com ela eleito. Fruto imediato do golpe, instala-se,
consolidando-o, um regime político autoritário, de direita, antipopular e antitrabalhista,
no contrapelo da opção política decretada pela soberania popular no pleito de
2014, que elegera o programa de um governo de centro-esquerda. Sua maior
inflexão - determinando o trânsito para a extrema-direita - se conta na
manipulação das eleições de 2018. Relembre-se a covarde pressão do comandante
do exército, gal. Villas Bôas, ditando ao STF a inelegibilidade do candidato
Lula. Ressalte-se, aliás, que o poder judiciário, das instâncias de piso aos
tribunais superiores, com destaque para o
STF, atuou sistematicamente como sujeito ativo no processo que caminhou
do golpe de 2016 ao governo civil-militar do presidente pinçado pelos generais.
O golpe se deu pelos que já controlavam o poder (para
garantir e ampliar seu mando), sem surpresa, sem subtaneidade, sem violência,
repercutindo as vozes dos generais - como sempre, aliás, mas desta vez sem a
necessidade de desfile das tropas e discurso das baionetas. A única encenação
foi, num frustrado ensaio de fratura constitucional, o tragicômico desfile dos
fumacentos tanques da marinha, desta feita sem deixar vítimas, senão a imagem
da corporação. Não há, porém, arte inovadora nessa modalidade de golpe soft,
mesmo entre nós. O império inaugura extensa e longa série com o golpe da
abdicação (1831), que levou o primeiro Pedro ao exilio, e vai consolidar-se com
o “golpe da maioridade” (1840), que apressou a entrega do cetro ao seu filho e
herdeiro, infante de 13 anos.
Em nosso continente, o golpe indolor e legal veio mais
recentemente substituir as quarteladas. É o histórico que se segue à revogação
do mandato de Fernando Lago, no Paraguai, em 2012. São seus sucessores o golpe
que levou à renúncia do boliviano Evo Morales (2019), pressionado por
relatórios falsos da OEA que falavam em corrupção eleitoral, e a derrubada de
Pedro Castillo, no Peru, após acusação de frustrada tentativa de autogolpe
(2022). Na Colômbia trama-se uma variante que os juristas batizam como “golpe
brando”, surto insurrecional da classe dominante contra o presidente Gustavo
Petro, contra o que o mandatário convoca
as massas populares. A contribuição
brasileira na categoria golpe soft, ou ‘brando”, é a espécie “golpe continuado”. É o título
dado aos quatro anos de permanente ação antirrepublicana do bolsonarismo, de
cuja sobrevivência estamos ameaçados, em face da correlação de forças
nitidamente desfavorável ao nosso governo, minoritário no congresso, malvisto
pelo grande capital e seus porta-vozes, indesejado pelos militares, malquerido
pelos EUA. E até aqui, pelo menos aparentemente, sem claro plano de resistência
e avanço, subsumido por recuos táticos que podem levá-lo a uma derrota
estratégica.
Se a essência da política pudesse ser vista a partir de suas
aparências, teria sido apropriado supor que o “golpe continuado” seria águas
passadas, com seu decreto de morte ditado pelo pleito de 28 de outubro de 2022,
quando a soberania popular voltou a falar, e, retomando pronunciamentos
anteriores, reiterou sua opção por um governo democrático de centro-esquerda.
Este, no entanto, nada obstante empossado e instalado, mal pôde constituir-se:
obsta-o a persistência do passado no presente. É que no mesmo pleito em que
consagrou Lula e seu projeto de governo de centro-esquerda (em outras palavras,
quando negou o protofascismo), o eleitorado elegia um poder legislativo cuja
base ideológica se confunde com o finado regime: ideologicamente de direita
transitando para a extrema-direita, abrigando consideráveis bolsões
fascistóides, majoritariamente devotado a negócios impublicáveis, prática que a
imprensa batiza de “clientelismo”, mas que o Código Penal tipifica com outras
definições.
Nesse congresso, “empoderado e liberal”, como o define seu
capo, o presidente eleito dispõe de algo como 130 integrantes de uma câmara de
513 cadeiras. Para governar, a maioria, apeada das prendas do Planalto pelo
voto popular, mas ainda no poder,
oferece a Lula uma falsa saída: ceder-lhe o governo. A eventual recusa
ao suicídio assistido pode ser o impeachment, se a oposição assim o quiser.
Justificativas legais serão achadas pelos juristas de plantão, como as alegadas
contra Dilma, e a burocracia já adquiriu expertise na manipulação dos
procedimentos cassatórios. E para a grande imprensa tudo não passará de mais um
grande espetáculo a ser coberto, como foram os idos de junho de 2013, as tramas
da lava jato, o golpe de 2016 e o pleito viciado de 2018.
Por alguma razão pousam na mesa do atual presidente da
Câmara seis pedidos de impeachment de Lula, e todos sabemos que o jagunço das
Alagoas, de quem Eduardo Cunha é a fôrma, não é nenhum Rodrigo Maia.
Com o poder executivo governado em condomínio com uma Câmara
hostil, o presidencialismo, perdido seu caráter e não adotado o
parlamentarismo, se reduz a um experimento transformista; esse híbrido,
estéril, malformado como um Frankenstein, agudiza a crise institucional e põe
em xeque a democracia representativa. No presidencialismo, o impasse entre
poderes não conhece solução, fora a derrota de um dos litigantes. O
parlamentarismo pratica a dissolução do Congresso e convocação de novas
eleições, como na França agiu François
Mitterrand em 1986, ao tomar posse na
presidência e confrontar-se com uma Assembleia reacionária. É a regra do
regime. O presidencialismo, porém, fora das quarteladas e do impeachment, ainda
não ajuizou alternativa. Os EUA, nosso sempre modelo, além do impeachment
copiado pela província, adotam a pinguela das eleições proporcionais em meio ao
mandato presidencial. Jânio intentou o aguçamento do confronto mediante o
biombo da renúncia, que era tão simplesmente a gazua com a qual pretendia abrir
caminho para sonhada volta triunfal, livre do Congresso. A história registra o
resultado.
É curial considerar o legislativo o mais legítimo dos
poderes republicanos, e nessa visão radica a simpatia das esquerdas em geral
pelo regime parlamentar de governo. No Brasil, porém, o parlamento é poderoso
colegiado da reação, do atraso, do conservadorismo mais rasteiro; legisla
contra o progresso, é adversário da igualdade social, agente do capital
rentista, avesso aos direitos trabalhistas. Há décadas vem, eleição após
eleição, decaindo politicamente, ideologicamente, eticamente e moralmente. A
fonte do desacerto, por óbvio, assenta-se em sua composição, e a discrepância
do voto, depositado pelo mesmo eleitor, no mesmo pleito, entre a chamada
majoritária e a proporcional (quando são eleitos os deputados), tem suas raízes
no fato de as forças de esquerda haverem renunciado, não de agora, à batalha
ideológica. Daí PT e governo, e o que há de progressista em sua base, se
acharem manietados diante do desafio representado por um congresso reacionário
comandado com mão de ferro por um delegado do atraso. Daí as forças
progressistas não terem condições de mobilizar a sociedade em torno de um
projeto de salvação nacional. Soubemos, mais uma vez, ganhar as eleições (de novo
a muito duras penas), mas carecemos de uma nova maioria política que não
ousamos constituir - na suposição, tantas vezes rejeitada pela história, de que
o pragmatismo resolve tudo.
Ainda é tempo de reagir.
***
Um centenário esquecido - Passou em branco no dia 14 de junho o centenário de Mário Alves de Souza Vieira (1923-1970), herói brasileiro, assassinado no dia 17 de janeiro no quartel da Polícia Militar, do I exército (na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro), um dia após ser preso. Mataram-no empalado com um cassetete de madeira com estrias de aço. Até hoje sua família e seus amigos aguardam seu corpo. Era ministro do exército o gal. Orlando Geisel, e comandante do 1º exército o gal. Syseno Sarmento.
Conflito na agenda - A política externa brasileira, que retoma os princípios de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, conflita, hoje mais que nunca, com a dependência ideológica do militar brasileiro aos EUA. Frantz Fanon, com a vista voltada para a África, identificava a sujeição do colonizado como um caso psicopatológico: preto, alma branca, ou seja, aspirante a reproduzir o senhor. Nelson Rodrigues famosamente traduziu nossa dependência como “complexo de vira-latas”.
As vítimas da Frente Ampla - A Câmara dos Deputados aprovou,
no ano e governo passados, o “Novo Marco Legal de Garantias”, que permite aos
bancos tomar até mesmo o único imóvel de uma família para a quitação de dívida.
Obscena, a proposta foi criticada por senadores como Renan Calheiros, Álvaro
Dias e Randolfe Rodrigues (hoje líder do governo). O Projeto “modernizante”,
reclamado pelo andar de cima, ameaça voltar à pauta do Congresso por obra do
vice-presidente da República, decerto articulado com a equipe econômica. Não se
sabe, ainda, quais ajustes serão feitos para tornar a crueldade “humanizada” e
palatável. De todo modo, fica a pergunta: conseguiremos, nesse diapasão, fazer
avançar a justiça social?
Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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