A Marinha sempre cultivou, desde a independência em 1822, a
sevícia dos praças negros e mulatos, como direito dos oficiais brancos, rompida
apenas após a Revolta da Chibata (1910), movimento de marinheiros liderado por
João Cândido, conhecido como “almirante negro” (uma boa fonte é a reportagem de
Edmar Morél: A revolta da chibata, Rio de Janeiro, 2ª ed., 1986. Sobre as
sevícias de que eram vítimas os marujos negros embarcados em nossos navios de
guerra, sugiro a leitura de O bom crioulo, de Adolfo Caminha). O levante foi
sufocado. Os marinheiros, embora anistiados, foram expulsos da Marinha e
presos, uns trancafiados nos calabouços da Ilha das Cobras, outros enviados para
trabalhos forçados na construção de ferrovia no Acre, um sem-número deles
assassinado. Era o preço cobrado pela república para abolir os castigos
corporais. Nas escolas de aprendizes marinheiros espalhadas pelo país, porém, a
educação dos grumetes continuou ao encargo do relho e a da palmatória.
Durante a campanha pelo petróleo, já após a
constitucionalização de 1946, estudantes, intelectuais e líderes de esquerda
foram presos e torturados, e muitos assassinados. A repressão se instalara sob
o general Eurico Dutra, primeiro
presidente eleito após a queda da ditadura Vargas e o regresso ao Brasil dos
“pracinhas” que na Itália haviam combatido o fascismo em seus estertores. O
antigo ministro da Guerra do Estado Novo (conhecido por suas tendências
germanófilas), agora presidente em uma democracia, associava nossos destinos
aos interesses dos EUA, a grande potência nuclear que emergia das cinzas da
Europa derrotada. Em nome dos ditames da Guerra Fria, inaugurada naquela
altura, o governo brasileiro subordina nossos interesses aos reclamos
econômicos e geopolíticos dos EUA, em luta contra a emergente União Soviética
(que explodiria sua primeira bomba atômica em 1954) e o espantalho da “expansão
comunista”. O governo Dutra participa da
Guerra Fria levando a cabo uma razia anticomunista – e "comunistas"
eram muitos brasileiros, pois, sob este título, a repressão civil e militar
alinhava todos os que se enfileiravam seja na campanha pelo monopólio estatal
do petróleo (que contrariava os interesses das grandes companhias
norte-americanas e britânicas), seja os que combatiam a carestia e os que
defendiam a paz. O Brasil de Dutra rompe relações com a URSS, cassa o registro
do Partido Comunista (que assim retorna à ilegalidade) e os mandatos de seus
parlamentares. No governo democrático de Getúlio Vargas (1951-1954), os
comunistas – que então lutavam contra o envio de tropas brasileiras para a
guerra da Coreia e a ratificação do acordo militar Brasil-EUA firmado por
Vargas – voltam a ser vítimas da repressão militar, desta feita levada a cabo
pela Aeronáutica. É a história de um campo de concentração e torturas instalado
em 1953 na Base Aérea de Natal resgatada pelo Centro de Direitos Humanos e
Memória Popular (Campo de concentração no RN – Torturas na Base Aérea de Natal-
1952-1953, Editora Potiguariana, disponível em www.dhnet.org.br).
Esse precioso livro, como nos adiantam seus organizadores,
“fala de torturas, de torturados e de torturadores” e descreve a mais íntima
dor dos supliciados, indefesos, impotentes diante da brutalidade sem
limites, seviciados fisicamente,
ofendidos e humilhados moralmente em níveis de sadismo que só a loucura do
torturador – reduzido à sua bestialidade – pode justificar.
Campo de concentração no RN nos traz, dentre outros
documentos pungentes, uma carta de um dos torturados, o dr. Vulpiano
Cavalcanti, médico em Natal, dirigida em 4 de junho de 1953 ao general Arthur
Carnaúba, presidente da Associação de Defesa dos Direitos do Homem; relata as
torturas e sevícias a que foram submetidos vinte e seis brasileiros
sequestrados, porque recolhidos ao quartel-tortura da Base Aérea de Natal sem
mandado judicial, sem responderem a inquéritos, sem direito de defesa.
Na impossibilidade de trazer para os leitores todos os depoimentos, limitar-me-ei a uma tentativa
de resumo das principais atrocidades a que foi submetido Vulpiano Cavalcanti
(que conheci em Fortaleza, na minha adolescência). Arrestado em seu consultório
em meio a um atendimento médico, quando praticava uma eletrocoagulação numa
paciente em mesa de ginecologia, o dr. Vulpiano foi levado à presença do
comandante da Base, quando, despido, foi espancado por socos, pontapés e
cassetadas, e na sequência recolhido a uma cela com 1,90m de altura por 1,90m
de largura, permanentemente molhada, com um alto-falante no teto que funcionava
ininterruptamente dia e noite, “emitindo sons agudos, graves e estridentes de
radiotelefonia, telegrafia e outras irradiações com predominância de músicas
fúnebres”. Nessa cela permaneceu 135 dias, sendo retirado constantemente para
sessões de torturas e interrogatórios. Com cassetete, que tentaram introduzir
em seu ânus, teve espancados os órgãos genitais. Quando, sob o suplício,
desmaiava, era reanimado com clister de pimenta. Golpearam-lhe os dedos das
mãos separadamente “até não poderem ser articulados, visando a inutilizá-lo
como cirurgião, conforme sadicamente diziam os torturadores”. Após tentar
impor-lhe a assinatura de uma declaração de suicídio, o oficial torturador o
esbofeteou até quebrar-lhe todos os dentes. Diariamente eram-lhe jogadas urina
e dejeções fecais. Seu corpo foi untado de mel para ser torturado pelas
formigas.
A inventividade dos algozes não tinha limite.
Vulpiano Cavalcanti narra outros suplícios de que eram
vítimas os presos políticos, metidos em camisas de força; muitos tiveram o saco
escrotal amarrado a um cordão para ser puxado por um torturador. Outra forma de
suplício consistia em enfiar agulhas nas unhas, ameaçar a vítima de atos de
sodomia, cuspir no seu rosto, obrigar o preso humilhado a andar de quatro e
latir como um cachorro, submetê-lo a várias horas sob o foco de lâmpadas de 500
volts. Comum era a prática de fuzilamentos simulados. Vários presos tiveram os
tímpanos de seus ouvidos estourados por murros, e muitos foram condenados à loucura.
Recolhido à Casa de Detenção de Recife, Vulpiano não se
limita a descrever, para denunciá-las, as sessões de tortura; vai em frente e deixa registrados os nomes
dos torturadores impunes.
As prisões e as
torturas, acusa nesse texto, foram autorizadas pelo ministro da Aeronáutica de
então, brigadeiro Nero Moura, e executadas pelos brigadeiros Ivo Borges e
Reinaldo (sobrenome não identificado) comandantes da 2ª Zona Aérea, sendo
comandante da Base Aérea de Natal o coronel Honório Ferraz Koeller e subcomandante
o major Roberto Hipólito da Costa. Completam o elenco de torturadores, ainda
segundo a denúncia do dr. Vulpiano, o capitão Ivan Machado Pereira; os tenentes
Carlos Alberto Bravo da Câmara, José Correia Pinto, Aldo Sartori, José Kaufman,
Cláudio de Sá e José de Souza Duboc; o investigador Armando Braga; o advogado
Bento Lima de Albuquerque, procurador-geral do Superior Tribunal Federal; os
sargentos Manoel Antônio Gomes Correia e Luiz Lins Marinho; o soldado José
Matias; e o investigador João Lopes de Araújo.
Vulpiano, que jamais abandonara a militância, voltaria a ser preso em 1964. Falece em Fortaleza em1988. Foi poupado de assistir à debacle da URSS e de ver antigos companheiros levarem cabo o projeto de demolição do PCB, ensejado pela repressão. Tampouco viveu para ver adoradores das masmorras da ditadura chegarem ao topo do poder político, no Brasil democrático, ostentando sua boçalidade com empáfia e completo despudor.
* Com a colaboração de Pedro Amaral e Fernando Mousinho.
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