Ponderáveis setores da esquerda brasileira, novos e antigos companheiros das lutas democráticas, cobram de Luiz Inácio Lula da Silva o anúncio de um projeto socialista para o Brasil de hoje – embora a revolução, sempre desejada, não esteja posta pelo processo histórico. Lamentavelmente. De Lula, um dos mais avançados quadros da centro-esquerda brasileira, como certificam seus oito anos de governo, o que havemos de esperar é a construção e liderança de uma nova maioria política, fiadora da continuidade democrática, fundamental para a luta dos trabalhadores no Estado burguês. Não é um fim, em si, mas processo sem o qual não retomaremos o projeto de uma sociedade sem classes.
Cobra-se do Partido dos Trabalhadores – o maior e o mais sólido partido da socialdemocracia brasileira – um projeto revolucionário que não está no horizonte de seu programa. Sob o comando de Lula, o PT lidera uma coalizão partidária de centro-esquerda, ampla, que mais e mais procura afastar-se das teses encampadas na saudosa campanha eleitoral de 1989, porque de lá para cá o mundo mudou, o país mudou e mudou o próprio PT, tanto quanto mudaram as perspectivas da esquerda brasileira, com a crise do “socialismo real” e as seguidas “diásporas”; e consequentemente as condições de luta pioraram. O PT mudou para vencer as eleições em 2002, e volta a mudar, desta feita para poder liderar uma frente ainda mais ampla, em condições de derrotar o projeto protofascista governante, que nos ameaça com anunciadas expectativas de continuidade.
O pior desatino comete o pretenso revolucionário que supõe poder alterar a realidade ignorando os limites de seu papel como sujeito histórico.
Como lembrava há mais de um século conhecido pensador alemão, o homem faz sua história, mas não a faz segundo os caprichos de sua vontade, de seus sonhos e de sua utopia; ele a faz segundo as circunstâncias com as quais se defronta (Cf. Marx, Karl. O 18 brumário de Luis Bonaparte). Dois mil anos antes, Sun Tzu recomendava aos generais em guerra conhecer previamente o inimigo e o terreno em que pretendiam lutar.
Mudando a conjuntura, as formas de luta também mudam.
Independentemente do PT e de seu líder, nos defrontamos com o recesso das lutas sociais, implicando o remanso da denúncia da luta de classes. A conjuntura internacional vê-se pontuada pela fragilização das organizações revolucionárias, socialistas e trabalhistas, pari passu com o crescimento de apoio popular a movimentos de direita e extrema-direita (vide França, Itália, EUA, Hungria, Polônia), como o que se revelou contundente nas eleições brasileiras de 2018. Entre nós a extrema-direita empalmou o poder cavalgando eleições livres, pela primeira vez. Não se trata de um fenômeno menosprezável, mas de um indicador do nível de consciência das massas.
Cresce o imperialismo como força política, econômica e militar, e esse crescimento pesa sobre o processo social. A agudização do militarismo é uma de suas evidências. É seu o monopólio da informação, de que resulta a unipolaridade ideológica, uma modalidade de ditadura nas sociedades de massas. Limitada em suas opções revolucionárias, a esquerda optou pelo ingresso na institucionalidade, que, lhe dando sobrevida, congelou sua capacidade de intervir na realidade, visando a modificá-la. Perdida a revolução, seu projeto passou a ser modificar por dentro as estruturas, tornando-se, assim, inevitavelmente, um fator da ordem. É uma nova socialdemocracia, substituta daquela que transitou para a direita, no mundo e no Brasil.
Combater qualquer alteração do statu quo, qualquer ameaça de mudança de rumo, mesmo dentro da legalidade, qualquer sugestão de reforma social, passou a ser o projeto retrógrado da casa-grande brasileira, que não convive com alterações, quaisquer, da ordem baseada na superexploração da classe trabalhadora. Daí o combate que travou contra os governos Lula e Dilma, daí seu apoio ao quadro político consequente, daí suas ameaças ao processo eleitoral de 2022, à posse e ao futuro governo Lula, quando o candidato promete colocar o pobre no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda. Essa resistência não conhece limite e explica o esforço do Lula candidato de construir, ainda no processo eleitoral, uma coalizão que lhe assegure, além da eleição e da posse, condições de governar, negadas a Jango e a Dilma Rousseff.
Nesta quadra histórica, está reservado às classes populares, organizadas, garantir a continuidade democrática e uma governança que possibilite a retomada do desenvolvimento, a recuperação das conquistas sociais e a preeminência do interesse nacional.
Para avançar, sempre a depender do que seremos e faremos no pós-2022, precisaremos alterar a atual correlação de forças, ampliando, para além de nosso campo, o arco político-social que garantirá a governabilidade a partir de 2023. Somente amparados em uma grande mobilização popular estaremos em condições de promover alterações significativas na estrutura do Estado brasileiro atual, sem as quais será impossível a um governo de raízes sociais descartar os entraves ao desenvolvimento nacional e remover a viciada, para além de nociva, ingerência da caserna atrasada sobre as instituições republicanas.
Tantos anos passados da Constituinte, retorna a discussão essencial sobre o caráter do Estado de que necessitamos para promover o progresso social, tantas vezes contestado pela casa-grande e seu braço armado.
A urgência histórica é a questão democrática, que se materializará na derrota do projeto continuísta do bolsonarismo. É, ao mesmo tempo, a tarefa mais consequente ao nosso alcance, e aquela que mais amplia na sociedade, daí o caleidoscópio de alianças que o ex-presidente intenta costurar com paciência de cesteiro. Porque é necessário ganhar e é necessário ter forças para poder governar e, principalmente, governar sabendo que contará com a resistência da casa-grande.
Nada obstante essas considerações, que aos quadros mais experientes podem tangenciar o óbvio, é preciso ter sempre em conta que a ainda difícil (tanto quanto necessária) eleição de Lula e o retorno do PT ao governo – ainda longe da hegemonia do poder – significarão um grande avanço político (ao qual se associa a esquerda socialista), por representar o avanço possível nas condições concretas. Este avanço possível das esquerdas está abraçado ao sucesso que promete a candidatura Lula.
As limitações óbvias de uma candidatura que, para viabilizar-se, carece de amplas alianças, mesmo ultrapassando as fronteiras de seu arco ideológico, não podem, porém, ser arguidas como inibidoras da ação e do proselitismo das esquerdas, a quem incumbe, na campanha eleitoral, a defesa das teses de nosso campo. Em síntese, compete à esquerda fazer a campanha da esquerda, jamais delegá-la a uma frente ampla cujo núcleo é a socialdemocracia. Toda campanha eleitoral é uma oportunidade de proselitismo. No caso concreto, os socialistas terão de associar a pedagogia ideológica à ação, o encontro ideal de teoria e prática, retornando à organização popular. Organização em todo e qualquer nível, para a ação e o proselitismo e, para, amanhã, responder aos desafios que lhe serão forçosamente impostos pelo processo social.
A deposição de Dilma e o que a partir dessa violência se seguiu não podem ser entendidos como frutos do acaso, nem muito menos pensados como “chuvas de verão”. O programa fascistóide tem raízes em ponderáveis segmentos da sociedade brasileira, sua existência guarda coerência com nossa formação de sociedade (em busca da nação) e país escravocrata, racista e autoritário, governado por uma elite alienada e forânea, descomprometida com os destinos do país e de sua gente. É preciso compreender o caráter do processo histórico para nele poder intervir consequentemente.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amara
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