Memórias de uma geração que desafiou o poder e moldou Paulo Afonso

Gilberto Santana é um dos Revolucionários que esteve na festa de confraternização do grupo de jovens que moldou a história e o futuro da cidade de Paulo Afonso na Bahia. Ele hoje mora em Juazeiro e viajar quatrocentos quilômetros de estrada sob o sol nordestino não são apenas distância. Foram fios que puxaram o novelo da história. Diante de olhos atentos, ele desembrulhou a saga coletiva de Paulo Afonso, uma cidade que um dia foi "partida ao meio por um esgoto", convivia com urubus e lixo, e viu nascer, do ventre da resistência, uma geração que ousou sonhar por justiça. Não apenas uma recordação. Sua fala foi um mapa do afeto e da luta que esculpiram a identidade de um lugar. 

Imagine uma Paulo Afonso onde a linha divisória não era apenas geográfica, mas social. De um lado, o "acampamento da CHESF", com seus privilégios. Do outro, a maioria, relegada à sombra e ao descaso. O esgoto corria a céu aberto, símbolo da negligência, e os urubus eram companhia indesejada. Esta segregação, entretanto, foi o solo fértil – e árido – onde germinou uma semente inesperada: a militância. Estudantes, operários, sonhadores começaram a se organizar. Era o "parto natural da esquerda", como define o narrador, gestado nas entranhas da desigualdade. Figuras como o fotógrafo Antenor, o Mestre Jorge, o Inácio Catingueira emergiram da memória como os primeiros tecelões dessa rede de resistência.

A geração de 1978 não hesitou. Desafiou a polícia do "Antônio Carlos Malvadeza", enfrentou o temido batalhão de choque e se ergueu contra a estrutura política do poder estatal e da burguesia local. A CHESF, comandada por um coronel (Gabriel), era um estado dentro do estado, uma "democracia operária" sob controle militar. Foi nesse caldeirão que se forjou a estratégia: o populismo como ferramenta para a grande greve de 1979. Pariu frutos: em 1980, nasceu a disputa pelo Sinergia; em 1981, o Congresso da Classe Trabalhadora; em 1982, a eleição livre que consagrou José Ivaldo de Brito Ferreira como o mais votado da história local. Neste mesmo ano foi eleito Evandro Paiva, o primeiro vereador do Partido dos Trabalhadores no Nordeste brasileiro. 

Os anos seguintes foram de construção. A UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) foi reconstruída em 1983, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) nasceu. Em 1984, Paulo Afonso ecoou com um dos maiores comícios pelas "Diretas Já". Com a abertura política em 1985, a cidade fez história novamente, elegendo Zé Ivaldo, então o prefeito mais jovem do Brasil pelo MDB. Seu governo inovou: inaugurou o "governo participativo", uma experiência pioneira antes mesmo de o PT ter vitórias eleitorais sólidas. Reuniões na "Prefeitura Velha" reuniam associações e líderes comunitários. Zé Ivaldo priorizou a cultura popular, não a indústria cultural, plantando sementes de identidade local. Paulo Afonso tornou-se um "farol", uma referência de esquerda vibrante no Nordeste, citada até no Sul do país. 

Mas o destino reservava uma curva. O ano de 1988 marcou um "trauma coletivo", um "acidente de percurso" profundo. A derrota eleitoral naquele ano não foi um simples revés. Foi uma operação cirúrgica das elites unidas, como o Gilberto Santana testemunhou. A CHESF, outrora palco de lutas, forneceu palanques e estrutura para os adversários. A esquerda, fragilizada pela divisão entre as candidaturas de Lina Ester e Francisca Siebert, e uma tentativa tardia de unidade com Gil do Castro, não resistiu. A prioridade da direita baiana era clara: apagar o "farol" de Paulo Afonso. "Eu não consigo ainda digerir aquela derrota", confessa, pois foi "dialética, estratégica". Representou o fim de uma era de hegemonia popular. 

O que fica? "Nós não temos nada no bolso", diz, metaforizando a falta de poder material hoje. Mas o legado é imenso: "bolso cheio de papel" (documentos, memórias) e "empolgado" diz que aquela geração foram "estrelinhas" que iluminaram o caminho, formaram movimentos sociais, ajudaram a construir sindicatos. "Essa cidade é o que é... graças a essa geração", proclamou, exigindo justiça histórica. E é desse reconhecimento que brota o apelo urgente: participar ativamente do PED 2025 no PT, eleger Renata em Paulo Afonso (Presidenta do PT local), Tássio (presidente estadual do PT). O PT precisa, clamou, "se reconectar com as bases", sair do "institucional", voltar a construir movimento social, "fazer lutas". Precisa resgatar a "perspectiva revolucionária, a utopia, o direito de sonhar", organizar as mulheres, o movimento negro, antirracista, LGBT. "O PT precisa ser um partido vivo" além das eleições, disputando hegemonia na comunicação e no dia a dia. 

"Já fomos fogo, hoje somos brasas." A metáfora final do orador queima com verdade. A chama que transformou uma cidade partida pelo esgoto e pela segregação com um muro que separava a sociedade literalmente, que enfrentou coronéis e batalhões de choque, que ergueu governos participativos e foi farol de esperança, não se apagou. Reduziu-se a brasas sob as cinzas do tempo e das derrotas. Mas brasas guardam calor. O discurso é mais que memória: é um chamado ao sopro. Soprar as brasas da organização, da utopia, da coragem coletiva que um dia pariu um Paulo Afonso mais justo. A pergunta que fica ecoando no auditório que um dia foi o "centro de convenções" da resistência, é: quem se juntará para soprar? A história, afinal, não é só o que foi. É o que decidimos reacender.

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