Vou repetir como um mantra coisa que venho dizendo faz
tempo: o Brasil precisa dar errado urgentemente. O país que anda se vendo no
espelho nesses anos bizarros é aquele formado por capitães do mato, capatazes,
senhores de engenho tarados, feitores, bandeirantes apresadores de índios e
destruidores de quilombos, genocidas, torturadores, coronéis, pistoleiros,
membros do esquadrão da morte, misóginos, homofóbicos, ágrafos, parasitas
sociais, fanáticos religiosos, burocratas medíocres, empresários mafiosos, ladrões
do erário, doutores pedantes, delatores sicofantas, milionários sibaritas e
arrivistas inescrupulosos.
Fomos moldados em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos,
senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, e
tambores calados. Somos frutos da arrogância dos bacharéis, da inclemência dos
inquisidores, da truculência dos oligarcas, do chicote dos capatazes, dos
apologistas de estupros e linchamentos e coisas do gênero.
Vou me citar em algo que escrevi faz tempo: o projeto de
normatização deste Brasil de horrores, para que seja bem sucedido, precisou de
estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos
corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de
forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no
trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens
para a virilidade expressa na cultura da curra: o corpo convertido, o corpo
escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal. Este Brasil é um
país de corpos doentes, condicionados e educados para o horror como
empreendimento.
No meio de tudo isso , para piorar , parece perdida a curto
ou médio prazo a possibilidade de qualquer projeto nacional menos bizarro. Os
projetos de uma esquerda que romantiza o precário e de outra que
pragmaticamente acha que os fins justificam os meios estão aí esparramados,
parecem birutas de aeroporto em vento de
viração. As ilusões iluminadas dos liberais decentes foram atropeladas
pela saudação que um troglodita fez ao assassino Brilhante Ustra, o capataz
mais grotesco do regime de exceção de 1964.
O parlamento é de uma indigência tamanha que parece se
dividir em três bancadas que não são exatamente ideológicas: a do cabelo acaju,
a do cabelo preto "asas da graúna" tabletes Santo Antônio e a do
implante cabeleira de boneca ou peruca de brinquedo assassino. O judiciário se
apresenta, em seu alto escalão, com a empáfia e a vaidade adequadas às celebridades de ocasião, se
prestando a convescotes com os poderosos. O executivo é inclassificável.
Mas temos o povo. Será?
Sinto informar, mas a maioria esmagadora da população -
pobres, ricos, urubus, tricolores, bacalhaus, cachorrada - apoia as pautas mais
obscurantistas. O povo libertário só existe nas nossas ilusões virtuais e
estamos em minoria acachapante. A inclusão apenas pelo consumo deu nisso: a
revolução é o carro na garagem comprado em 76 prestações. Nosso próximo passo
parece ser a privatização, ao mesmo tempo, das universidades públicas e dos
presídios brasileiros. Virar dono de penitenciária vai ser um tremendo negócio.
E a gente faz o que? Morre feito bandido em filme de faroeste - metendo bronca
no salão. Mas estamos em minoria evidente; a população é majoritariamente
conservadora e achar que seremos vanguarda das massas, com nossas tochas
iluminadas, está mais perto do delírio que do sonho.
É neste sentido que não acho que o Brasil deu errado.
Discordo e recentemente escrevi sobre essa ideia. O Brasil foi projetado pelos
homens do poder para ser isso aí: excludente, racista, machista, homofóbico,
concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua gente,
intolerante, boçal, misógino, castrador, faminto e grosseiro. Somos isso tudo,
não? Neste sentido, desconfio que nosso problema não é ter dado errado. O
Brasil como projeto, até agora, deu certo.
Eu não desisto. O trabalho é miúdo, constante, longo, de
enfrentamento e aprendizado. A ideia de resistir não é mais suficiente. O papo
é reexistir mesmo. Sei de onde venho: sou das trovas do Bandarra, dos cantos da
Aruanda, da procura de Ivy-Maraê, da certeza do passeio do touro coroado do
Lençol buscando sair do deserto de Alcácer-Quibir, do prelúdio das bachianas no
rodopio de Corisco, da solução do mundo desvelada no contracanto do Pixinguinha
no Um a Zero.
É por isso que messianicamente me agarro, nas horas de
desespero, na lembrança de que na beira do abismo, parido pelo ventre do navio
que atravessou a calunga gritando o triunfo da morte, alguém sobreviveu e bateu
um tambor; o mesmo que reverberou um dia, afirmando a vida e cuspindo na cara
do capitão do mato, numa esquina vagabunda do Estácio.
Em resumo, nós somos, a definição que me ocorre é essa, um empreendimento escravagista fodidor dos
corpos extremamente bem-sucedido. Deu certo até hoje, com sobras. A nossa chance é começar a dar errado com a
maior urgência.
Luiz Antônio Simas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário