A primeira leitura sugere tratar-se de adaptação de provável Parecer, requerido por quem não se sabe e talvez não seja relevante saber. Pode ter sido a indústria armamentista, pode ter sido a caserna desatendida, pode ser, até mesmo, o ainda ministro da defesa em sua campanha visando, em momento muito delicado, a desestabilizar a política externa do presidente Lula, seu chefe. Fiquemos com a "melhor" hipótese: os interesses do sionismo.
O texto não honra o professor sênior. Seja na forma, seja no
conteúdo, seja, principalmente na tentativa de argumentação jurídica, que
poderia ser seu ponto alto. Assim, por exemplo, Lafer abre o arrazoado
cavalgando afirmação absolutamente imprópria à terminologia jurídica, ao
afirmar que o presidente Lula “embargou a compra de equipamentos”. Ora, essa
hipótese é descabida até mesmo como tese. A insustentabilidade da premissa
primária torna insanavelmente descabidas as considerações dela consequentes. E
revela negligente e capenga compreensão do quadro constitucional pertinente. O
que é incompreensível em texto da lavra de um jurista.
Comecemos, porém, com seu surpreende desconhecimento das
leis das licitações, pois a arguição visa a contestar o ato do presidente da
república que revogou concorrência do ministério da Defesa que aprovara a
compra, pelo ministério, de equipamentos militares de empresa com sede em
Israel, Estado beligerante contra a civilização. Diz Lafer que a decisão não
tem base “nos princípios que disciplinam a administração pública brasileira
(...)”. Vejamos o que reza a lei das
licitações (Lei nº 14.113/2021):
“Art. 71 - Encerradas
as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os recursos administrativos,
o processo licitatório será encaminhado à autoridade superior, que poderá:
I - (...)
II - revogar a licitação por motivo de conveniência e
oportunidade”.
O professor se esmera em elogios ao insubordinado ministro da Defesa e (eis o ponto nodal da questão); na mesma toada desanca a política externa. Afirma que a decisão presidencial “não se justifica pelos princípios da paz e da solução pacífica do conflito...”. Ora, o beneficiário da compra seria um Estado beligerante, e fornecendo-lhe divisas, o Brasil estaria objetivamente se associando aos seus crimes! Lafer, porém, insiste e logo adiante escreve, retomando a linguagem dos pareceres jurídicos: “Concluo assim do acima exposto que a decisão do presidente Lula é uma sanção discriminatória que não se amolda aos princípios norteadores das relações internacionais e da administração pública do país”. Seu cliente fica exposto nesta afirmação que se esvai na pura retorica: “É [a decisão de Lula] equivocada avaliação diplomática do interesse nacional, fruto de uma opacidade intencional (sic.) de sua política externa, animada por um ímpeto de depreciar Israel no cenário geopolítico das paixões e tensões da vida internacional”.
Quem deprecia Israel – e o está levando ao justo isolamento internacional – é sua política declaradamente genocida e covarde, de base racista, sustentada pelo guarda-chuva financeiro, militar e estratégico dos EUA. E que não se aguarde o julgamento da história. Ele se acha em pleno andamento, e Israel já é réu.
Lafer, como se vê, finge desconhecer o Preâmbulo da Constituição, que institui um Estado Democrático destinado a assegurar, entre os valores supremos ali enumerados, o compromisso com a “solução pacífica dos conflitos” na ordem internacional. Além disso, igualmente ignora os princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil (art. 4º), onde se destacam o da “prevalência dos direitos humanos”, a autodeterminação dos povos”, a “defesa da paz” e o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.
Todos esses princípios estão sendo frontalmente agredidos por seu cliente.
Uma gama de manifestações emitidas no âmbito das Nações Unidas e nos fóruns internacionais denominam o que está ocorrendo em Gaza e na Cisjordânia, criminosamente ocupadas por Israel, e agora no Líbano, como flagrante continuidade do genocídio mais visível e documentado da história da humanidade.
A atitude do Brasil, por seu chefe de Estado, recusando o ignóbil papel de conivente e colaborador do projeto sionista – tentado mediante o disfarce de compras de armas (uma forma de financiar o Estado agressor) – não é apenas o legítimo exercício de uma faculdade presidencial. É, também, o cumprimento de exigência constitucional e, acima de tudo, o atendimento de irrecusável dever moral.
Lamentavelmente, faz-se necessário lembrar a um ex-ministro de relações internacionais que o Brasil está submetido à jurisdição da Corte Internacional de Justiça, cuja atuação vem revelando a extensão do genocídio sionista, a abundância dos crimes contra a humanidade, em permanente exercício pelo Estado do Israel (cujos interesses e crimes são defendidos pelo professor-parecerista) e uma forma, ainda que parca do ponto de vista econômico, mas monstruosa do ponto de vista moral, seria nossa contribuição financeira para o horror, mediante a insólita compra de armamentos. Na contramão dos interesses da guerra, está o Brasil, legal e moralmente, obrigado a envidar todos os esforços ao seu alcance para fazer cessar e prevenir a continuidade do inominável massacre imposto às vítimas do genocídio em curso. O mínimo é não ajudar financeiramente o massacre de palestinos, a obsessão sionista, que o mundo se recusa a barrar.
Considerando que o presidente da República deveria, na apreciação da licitação, levar em conta tão simplesmente sua legalidade formal – abstraindo o mundo e a realidade fática –, e levada às últimas consequências as abstrações históricas sugeridas pelo artigo, estaria o Brasil de outrora política e eticamente autorizado, em tese, a comprar equipamentos, eficientes que fossem, utilizados em campos de concentração nazistas, desde que fossem objeto de licitação vencida pelo regime opressor. O que nossa honra repele.
No frigir dos ovos, estamos em face do insólito discurso da caserna atrasada, de que é locutor o ministro Múcio, para nos dizer que a decisão do presidente Lula “desconsidera não só a conveniência, mas também a oportunidade da administração pública brasileira de aprimorar, pela zelosa ação do Ministério da Defesa, a qualidade do equipamento das Forças Armadas”. Não é por aí. A qualidade do equipamento das forças armadas do Estado brasileiro depende da anterior definição – política e do poder civil – do papel que lhe deve ser destinado. E este papel só terá sentido quando as tropas se libertarem da subordinação doutrinaria das formulações do Pentágono, que elege, em detrimento da defesa da soberania nacional, a prioridade do combate a um inimigo interno que inventa: a ameaça comunista que só sobrevive nas mentes tacanhas de espertalhões e golpistas.
De outra parte, não dispõe de forças armadas o país que as
aparelha com equipamentos, tecnologia e doutrinas estrangeiras. O
reaparelhamento das forças armadas do Estado brasileiro depende de tecnologia e
indústria bélica autônomas. Mas, para tanto, o país (dramaticamente ainda preso
ao falso destino de economia agroexportadora, imposto pela classe dominante de
sempre) carece de um projeto de ser: em pleno século XXI não temos clareza
de que sociedade pretendemos construir,
e quando ensaiamos qualquer movimento que vise a um mínimo de independência, a
independência possível ditada pelas nossas circunstâncias, somos bombardeados
pela pelo 1% de ricos e muito ricos, como os donos da Faria Lima, comprometida
com nossa condição de país dependente na
esquina do capitalismo.
***
O BRICS e o complexo de vira-lata – A cúpula do BRICS reúne
em Kazan, na Rússia, países que abrigam mais da metade da população mundial.
Veículos como CNN e Bloomberg registram a grandeza do evento. Mas por aqui,
nessa miséria de informação e de análise, nove entre dez comentaristas insistem
em fazer crer que: 1) o líder russo está isolado (devido à guerra contra a OTAN
na Ucrânia); 2) O BRICS nada mais é que uma provocação ao "Ocidente"
(ao qual julgam pertencer). A cobertura do Jornal Nacional é de uma facciosidade
de fazer inveja à Fox News.
Hesitação diplomática – Em seu discurso na cúpula dos BRICS,
feito remotamente, o presidente Lula denunciou, com firmeza, que "Gaza se
tornou o maior cemitério de crianças e mulheres do mundo. Essa insensatez agora
se alastra para a Cisjordânia e para o Líbano". Nada obstante isso, que é
muito, o chanceler Mauro Vieira afirmou à imprensa, em Kazan, que não está em
consideração romper relações com o Estado genocida: "Romper relações não
leva a nada, só leva ao acirramento da situação, pode levar a conflitos maiores
na região”, aduziu. Erra o ministro, e o melhor exemplo de seu erro de
avaliação é o caso do apartheid, regime racista (como o do enclave sionista)
que foi isolado e enfraquecido após diversos países africanos e europeus
romperem relações com a África do Sul.
A serventia da bonança – O ministro Fernando Haddad
celebrou, nas redes sociais, o fato de o FMI haver atualizado a projeção de
crescimento econômico do Brasil, de 2,1% para 3%: “Crescimento sustentável com
inflação controlada e justiça social”, exultou. De fato, sobram razões para
celebrar a bonança: trata-se de um ótimo momento para aplicar controle de
capitais, taxar as grandes fortunas, rever as faixas do IRPF (como prometido),
ampliar o investimento público em Saúde e Educação e mandar para as calendas
toda proposta reacionária de arrocho no povo trabalhador. Mesmo porque 2026
está logo ali.
E lá se foi mais um amigo – Vladimir Carvalho foi um grande
cineasta-documentalista porque era, acima de tudo, um grande brasileiro.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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