Para o novo presidente do STF, ministro Luís Roberto
Barroso, o fenômeno, que ele celebra como avanço civilizatório, tem origem nos
méritos da Carta de 1988, a partir de cujo mandato “O Estado voltou ao seu
tamanho natural, o Legislativo se expandiu, e o Judiciário viveu seu momento de
expressiva ascensão institucional”(O Globo, 5/10/2023).
Sem abdicar do projeto protofascista, o capitão autoritário
(de triste memória) é obrigado a ceder espaços de governo ao Legislativo; daí
em diante, o presidente da Câmara, principalmente quando enfeixa a gerência do
“Centrão”, entra a agir como se primeiro-ministro fôra, em um presidencialismo
canhestro que começa a assumir as feições de um Frankenstein. É o
presidencialismo transformista de nossos dias. O Executivo é obrigado a ceder
espaço ao Congresso e ambos se encontram em frente a um Judiciário sedento de
holofotes e poder político.
Nas eleições de 2022 a democracia se vê momentaneamente
salva (ainda hoje comemoramos sua sobrevivência), mas o decreto da soberania
popular não fornece a Lula as precondições de um governo forte, na tradição
presidencialista brasileira. Ademais da estreita margem de votos com que coroa
o vencedor, elege um Congresso majoritariamente reacionário – o mais
reacionário e fisiológico de quantos a história registra –, comprometido com a
miséria da política, desapegado a
valores éticos. São essas condições –
uma maioria que enseja o controle das votações – que o credenciam a partilhar o
governo.
Na primeira legislatura da democratização, o deputado
Roberto Cardoso Alves, líder do “Centrão” daqueles anos, cunhou expressão que
ficaria famosa nas antessalas dos
gabinetes de negócios: “É dando que se recebe”, que Arthur Lira atualizou para
“É recebendo [cargos e verbas e prebendas]que se dá votos”.
Embora perdidas as eleições presidenciais, o “Centrão” ganha
o governo mediante a fórmula da coabitação, e o governo que venceu com um
discurso de centro-esquerda é condenado a governar com a direita parlamentar,
guardiã do atraso, de quem depende sua estabilidade.
Nesse novo presidencialismo, construído ao sabor da
conjuntura, releva como paradigma da nova ordem a recente reunião do Presidente
do Senado com ministros do governo Lula (guardando convalescência de uma
delicada cirurgia) para discutir combate à fome, garantia de segurança
alimentar e redução do desperdício de alimentos, clássicas funções de governo.
As condições objetivas favorecem tanto o Poder Legislativo
quanto o Judiciário, sempre em prejuízo do Executivo. O STF assumiu, o papel de
agente supremo das instituições, algo como um novo "poder moderador"
(tão requisitado pelos fardados), legislando, ditando linhas de ação e, até,
julgando, sem perda de sua natureza eminentemente política.
Significativo, sintomático até, é o discurso de posse do
novo presidente do Supremo, falando como
se assumisse a presidência da República, eis que apresenta uma plataforma de
governo, assim resumida: combate à pobreza; desenvolvimento econômico-social
sustentável; prioridade máxima para a educação básica; investimento relevante
em ciência e tecnologia; investimento em saneamento básico; habitação popular;
retorno do Brasil à sua posição de liderança global em matéria ambiental.
Plataforma ambiciosa, grandiloquente, que parece não caber
nos estreitos limites do artigo 102 da nossa maltratada Constituição, que cuida
das atribuições do STF.
O Executivo parece ressentir-se do cerco, enfraquecido em
face das articulações levadas a cabo com o presidente da Câmara e gerente do
“Centrão” que desnaturaram o ministério original, preço cobrado para evitar as
amarguras que marcaram o frustrado segundo governo Dilma, aquele que não
aconteceu. Enquanto Congresso e STF disputam a cogestão, os militares voltam a
agir como um poder autônomo e, perigosamente para a democracia enferma, tudo
permanece como dantes no castelo de Abrantes. Ou seja, à margem da sociedade
real.
***
O infame comércio de sangue – Em tempos de “delações
premiadas” (direito privativo de réus confessos), a capa da edição do último
04/10 da Folha de S. Paulo, reproduzida noutros jornalões, é o recibo do
aluguel de sua opinião (e dos demais) ao serviço da infame comercialização do
sangue humano, em proveito de uma gangue internacional, em prejuízo do SUS e,
por consequência, em detrimento dos que não podem se internar na Rede D’Or ou
no Sírio-Libanês. Aprovada na CCJ do Senado, a proposta repulsiva caminha para
ser referendada por suas excelências, nos próximos dias, no plenário daquela
casa legislativa. Resiste a honrada ministra Nísia Trindade.
Democracia e jardinagem – Meu sempre saudoso amigo e mestre,
ministro Evandro Lins e Silva, uma coluna de dignidade que falta à magistratura
de hoje (do piso à Corte), deplorava, estarrecido, a promiscuidade desabrida,
nos bares, restaurantes e convescotes de Brasília entre advogados e magistrados, muitas vezes
reunindo, na mesma mesa, litigante e julgador. E Evandro não chegou a conhecer
os festins promovidos em Lisboa pelo inefável Gilmar Mendes, nem as viagens promovidas
a qualquer pretexto, como congresso ou turismo descarado, ou palestras aqui,
ali e acolá, patrocinadas por empresas
privadas. Nem era praxe, em seu tempo, ministros de tribunais superiores serem
remunerados por participação em eventos privados. O máximo aceito era o
magistério. Saudosos tempos em que o decoro era um valor, e o juiz “falava nos
Autos”. O quadro de hoje é deplorável, quando tanto precisamos de um poder
judiciário inatacável, quando seu papel, de guarda da ordem constitucional,
mais se avoluma e mais se torna necessário. Este comentário, talvez saudosista,
me foi sugerido pela leitura da impecável coluna FolhaJus desta semana,
assinada pelo repórter Frederico Vasconcelos, sobre as peripécias do agora
ex-ministro Ricardo Lewandowski. Recomendo sua leitura. Está disponível em:
https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br
Cá como lá – A inflação nos EUA continua assustando os
monetaristas e os especuladores de lá e de cá, aqui por ressonância. O FED
encontrou uma explicação, que os ditos especialistas aqui papagueiam: a queda
do desemprego, de que resultou aumento dos salários, determinando aumento do
poder aquisitivo da população e, evidentemente, maior poder aquisitivo,
aquecendo a economia. Trocando em miúdos: a estabilidade financeira é
incompatível com o desenvolvimento social. Economia capitalista sadia é aquela
que não distribui riqueza.
O efeito Orloff e o apoio cínico ao fascismo – Como se sabe,
a Argentina vai às urnas ao final deste outubro, em votação de primeiro turno,
para eleger seu próximo presidente, e, na esteira do desgaste do peronismo e da
direita tradicional (algo como a socialdemocracia paulista) assoma no horizonte
a sombra de uma figura abjeta, com discurso e plataforma de inspiração
fascista. Exatamente o roteiro que, há pouquíssimo tempo, mergulhou o Brasil no
obscurantismo bolsonarista, trauma de que apenas começamos a nos recuperar.
Dúbia, ziguezagueando entre os interesses do capital e os valores da democracia liberal que diz defender, nossa chamada grande imprensa faz acenos ao extremista: um colunista festejado se permitiu caracterizar Milei como “libertário” e, para diferenciá-lo do capitão Bolsonaro – aparentemente já sem serventia para a classe dominante nativa –, apressou-se a afirmar que o argentino defende o Estado mínimo e se difere da nossa ultradireita (Guga Chacra, "Libertário, Milei é diferente da extrema-direita bolsonarista", O Globo, 15/08/2023). E o inexcedível Estadão foi além, fabricando a seguinte manchete contra seu eterno inimigo: “Lula atuou em operação para banco emprestar US$ 1 bilhão à Argentina e barrar o avanço de Milei”.
A burla foi logo incorporada à campanha do neofascista
argentino, que escreveu que o “presidente comunista” do Brasil estaria
negociando para que “um banco brasileiro” emprestasse U$ 1 bi ao governo de seu
país para tentar evitar sua vitória. Orgulhosa, a editora-executiva de política
do declinante jornalão (hoje um tabloide), comemorou a façanha.
Na realidade, a instituição financeira em questão é o Banco
de Desarrollo de América Latina y el Caribe (CAF), e o empréstimo em referência
foi aprovado por 19 dos 21 votos. Se o Brasil se valeu de sua influência no
colegiado para apoiar um de seus principais parceiros estratégicos (a segunda
maior economia, e o terceiro país mais populoso da região), fez muito bem – de
resto, cumprindo o disposto no art. 4º da Lei Maior.
Não surpreende, contudo, que a criação de uma comunidade latino-americana de nações tanto desagrade aos atrasados herdeiros da lavoura cafeeira, e que estes acenem ao novo bufão da extrema-direita. É esta a nossa classe dominante; estes, os seus porta-vozes, que amanhã se dirão “perplexos” se a serpente do fascismo chocar seu ovo peçonhento às margens do Rio da Prata.
A dor no horror – Triste e indignado com a situação Estado
do Rio de Janeiro, sem governo digno do nome e mais que nunca refém do crime organizado,
solidarizo-me com os valorosos deputados Sâmia Bomfim e Glauber Braga, do PSOL,
neste momento de dor profunda e inconsolável.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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