“O Brasil tem um arremedo de Defesa. Neste domínio, a República fracassou. Para a afirmação da soberania brasileira, precisamos de uma nova Defesa, que revise o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas. Chamo essa revisão de reforma militar”.
Manuel Domingos Neto - O que fazer com o militar (Editora Gabinete de Leitura)
Graças ao empenho e a coragem de alguns poucos cientistas
sociais, e dentre eles destaco o prof. Manuel Domingos Neto, abre-se, ainda
restrito, ainda tímido e cauteloso, o necessário debate sobre o papel das
forças armadas do Estado brasileiro. Já não era sem tempo, passados quase 60
anos do golpe de 1964 e nada menos de 35 da Constituinte tutelada, restrita,
despida de poder originário, costurada sob a vigilância dos generais (um só
exemplo é o ameaçador art. 142). Esta nossa democracia limitada, tanto frágil
quanto seguidamente ameaçada pela caserna, é o preço do acordo que a
possibilitou. Não poderia ser diferente, quando o próprio fim da ditadura foi
negociado, e, longe do despejo, os militares ditaram as condições do retorno à
caserna. Um dos itens da conciliação foi a impunidade dos torturadores, quando
a “correlação de forças”, conceito hoje tão em voga, sugeria o avanço das forças
populares. Mas, como sempre, venceu a conciliação liberal, e o avanço foi
substituído pelo recuo.
Nessa crônica de autoritarismo e insurgência, um fio de
ligação: a impunidade, que ajuda a compreender a morfologia da intentona do
último 8 de janeiro. Seus custos são consabidos. Ignorá-los é acumpliciamento.
Punir os transgressores, um imperativo cívico.
Este é o pano de fundo das reflexões do professor Manuel
Domingos: os fatos e suas implicações, vistos a partir do processo social. Seu
laboratório é a caserna, ponto de partida para a indicação de reformas que
alterem o presente vivido para construir um futuro imediato distinto. Sua
proposta é a reforma militar, a qual, por sem dúvida (e não o ignora o
historiador e cientista social), será a decorrência de uma reforma-mãe, a
reforma política, revolvente das estruturas arcaicas, dependente do progresso
das forças sociais. Mas esta não pode ser uma decisão de Estado, de cima para
baixo, pois deverá crescer como uma exigência da sociedade civil sufocada.
O bolsonarismo, filho do militarismo golpista, não deve ser
visto como “um raio em céu azul”, pois sua insurgência só terá surpreendido aos
que desprezam os ensinamentos da história. Quem não os conhece dificilmente
cumpre o papel de sujeito.
No dia 17 de março de 1964 o Partido Comunista Brasileiro,
em festa de aniversário no auditório da ABI, no Rio de Janeiro, dizia aos seus
militantes que as forças armadas brasileiras, “oriundas da classe média”, eram
legalistas e democráticas, o que afastava do horizonte qualquer nuvem de golpe
militar, temido, nada bstante o “dispositivo militar do Gal. Brasil”. Poucos
dias passados, molhados os pés às margens da revolução social prometida,
surpreendemo-nos afogados pela ditadura, que, mesmo naquela altura, não se
supunha tão cruenta e longeva. Era o preço de nossa alienação. Como olhar para
além do agora imaginado, se não conhecíamos, sequer, o presente? Lamentável que
seja, o fato é que nossas lideranças mais respeitáveis teimavam e teimam em
tentar interpretar a realidade a partir da contemplação das aparências.
Quando a ditadura, superada como necessidade da classe
dominante, cedeu o poder à administração direta do grande capital, nos deixamos
vencer pela ilusão de que a democracia havia, finalmente, se consolidado em
país fraturado por brutal desigualdade social. Prelibando o poder, renunciámos
à revolução, e nos entregamos à disputa
pela administração benfazeja da sociedade de classes.
Embalados pelas vitórias do projeto de centro-esquerda,
concluímos que as massas populares estavam a poucos passos da consolidação
democrática, até que a “surpresa” do golpe de 2016, a prisão de Lula e a
eleição do candidato dos militares e da extrema-direita nos mandasse de volta à
realidade de uma sociedade conservadora e atrasada.
Em 2018 surpreendemo-nos com o avanço do projeto militar e a
emergência da ultradireita; em 2022 muitos setores democráticos, todos
observadores das aparências, aliviados com a eleição de Lula, deram como salva
a democracia. Em meio às comemorações da posse, o país em festa, fomos
surpreendidos pela quase virada de mesa de 8 de janeiro, o 18 brumário que não
deu certo. Ao invés da ditadura de Luís Bonaparte, a novidade é um capitão
correndo o risco de conhecer a cadeia.
A surpresa de hoje, para o campo da esquerda – a descoberta
de uma direita protofascista com base popular –, começou a ser narrada nos
indevassados idos de 2013. Mas então a novidade era muito incômoda para ser
reconhecida.
Na sequência de três governos progressistas (os dois de Lula
e o primeiro de Dilma, pois o segundo não houve), nos convencemos da
emergência, final, de uma social-democracia progressista. O atestado eram as
vitórias eleitorais do bloco de centro-esquerda liderado pelo PT. Presentemente
nos assustamos convivendo com uma sociedade ainda arraigadamente conservadora.
Quanto mais caminhamos, mais andamos
para trás, carregando o passado como destino.
Os que se deixaram surpreender pela insurgência da
extrema-direita, fruto histórico impercebido ou negado, dão agora como favas
contadas o fim de sua ameaça, como se os apertados números das eleições de 2022
fossem indicadores de uma revolução social, assim nos libertando da autocrítica
necessária. Pode ser boa forma de esquecer nossa responsabilidade na aparente
inversão dos polos políticos; jamais uma solução.
O ovo, porém, não gorou; a serpente, viva, apenas se
recolheu para melhor sobreviver e permanece na espreita de oportunidade para novo ataque, se o antídoto
não for aplicado de imediato, como é de regra na república tutelada: a punição
dos golpistas e a reforma militar, que só terá sentido se fruto de um grande
debate nacional, como este apenas inaugurado pelo prof. Manuel Domingos, ainda
nos modestos auditórios ao seu alcance. Mas pouco avançaremos se não furarmos
os limites presentes, promovendo – os partidos e as instituições democráticas,
as entidades de classe, a sociedade civil – um grande debate envolvendo Congresso, universidade, sindicatos,
imprensa, movimento estudantil e mesmo a caserna, retirada de seu casulo. O
poder judiciário (sobre o qual não nos é permitido tecer ilusões) ensaia uma
reação que precisa ser sustentada, e
mesmo a chamada grande imprensa já se dá
conta do que recusou ver ao aderir irresponsavelmente ao golpismo.
Eleito como fruto de um projeto de estado-maior, o
paraquedista Jair Bolsonaro foi sustentado pelo que hoje se sabe ser a última
geração dos porões da ditadura, em conluio com o que há de mais reacionário na
soleira da pequena política nacional, de que o “Centrão” é paradigma.
As forças armadas, diante do desafio levantado pelo
capitão, dividiram-se em tarefas
igualmente comprometedoras, da omissão na defesa da legalidade democrática à
ação direta visando à desestabilização institucional.
A Marinha, comandada por um almirante que precisa ser levado
às barras dos tribunais, chegou ao cúmulo do abuso de poder com o jocoso
desfile de tanques reumáticos e fumacentos na Esplanada dos Ministérios, no intuito de pressionar o Congresso no dia
em que apreciava o tosco projeto do voto imprenso, jogo que interessava ao
capitão para desestabilizar o processo eleitoral.
Logo após a derrota nas urnas, o capitão reuniu-se com os
comandantes militares para maquinar o golpe derradeiro. Enfrentou resistência
do comandante do exército, silêncio cúmplice do comandante da aeronáutica e
apoio entusiástico do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, que
permanece impune.
Incapazes de cumprir com suas atribuições constitutivas,
nossas forças se formaram no cruento combate às insurreições populares. Desde a
colônia seu ofício é combater o “inimigo interno” – e inimigo é quem quer
ameace a ordem dominante. O indígena arredio, o escravo rebelde e seus
defensores, condenados como inimigos da ordem, a imagem sagrada no altar-mor do
civismo castrense. Inimigo é quem ameace o mando.
Na colônia, inimigo era quem se atrevesse a pôr em risco a
Coroa; no Império, os adversários do latifúndio. A República sem povo consolida
o poder militar em defesa da ordem reacionária. Instala-se a curatela
político-ideológica sobre a sociedade, sob o comando de militares sem autonomia
ideológica. Produto do processo histórico, são igualmente o instrumento de
construção e sustentação de uma sociedade fundada na desigualdade social, e de
um Estado dependente da ordem internacional hegemônica. Na colônia, no Império
e na República.
Desapartados da defesa nacional, fazem-se instrumento dos
interesses das grandes potências. Após a segunda guerra mundial se transformam
em soldados da Guerra Fria e se dedicam ao combate ao seu irmão interno, os
amantes da paz, correntes nacionalistas e progressistas, os trabalhadores e os
camponeses sem terra, os comunistas e as esquerdas, armadas ou não. Sem saber por
que, são contra a reforma agrária e os trabalhadores de modo geral. Em
compensação, não têm a mínima condição de enfrentar a ameaça de um inimigo
externo.
Se ainda almejam merecer o crédito público, os militares não
devem perder esta oportunidade de autocrítica, e pedir desculpas ao
contribuinte. Se o governo tem ciência da bomba de retardo sobre a qual se
senta, não pode perder esta oportunidade, de fragilidade momentânea do
militarismo, para tentar pôr a casa em ordem. E para isso não dispõe de muito
tempo.
***
Perseguição a um soldado legalista - No momento, apenas um oficial brasileiro está, de fato, ameaçado de expulsão da caserna, e não é o valete do paraquedista. Trata-se do digno e combatente coronel Marcelo Pimentel que responde a quatro processos disciplinares e um IPM, este aberto em nosso governo pelo qual lutou, como lutou sempre pela dignidade das instituições militares. A perseguição começa sob o comando dos asseclas de Bolsonaro, e prossegue agora, em nosso governo. O ministro José Mucio Monteiro Filho, faz ouvidos de mercador. Alguém, com acesso ao Alvorada, precisa levar essa ignominia ao conhecimento do presidente Lula.
Antirracismo na mira – A pistolagem jornalística segue sendo
um serviço que as grandes empresas de comunicação oferecem à classe dominante,
de que são porta-vozes, e aos grupelhos beligerantes que travam batalhas
intestinas pelo micropoder, na seara da pequena política. O alvo do momento é
Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial (que uma articulista reacionária
chegou a acusar de deslumbramento). Fará mal o alto comando do Governo Lula se
não tratar de defender da fritura em curso a ministra e o recém-criado
Ministério, os quais, em meio a políticas de austericídio, privatização de
presídios e cooperação com fundações empresariais suspeitas, entre outros
opróbrios, ainda mantêm vivo um pouco daquela esperança equilibrista que se
renovou com a belíssima subida da rampa, em 1º de janeiro passado.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Nenhum comentário:
Postar um comentário