O labirinto em que se encontra o presidente Lula – no esforço por dar caráter ao seu governo, que se espera desenvolvimentista – é formado por uma sequência incontável de desvios, túneis, alçapões e armadilhas arquitetados pela casa-grande, para quem a tragédia social é uma irrelevância. Guarda-o um Minotauro ferocíssimo e insaciável.
A Lula foi concedida,
em 2022, a disputa eleitoral, negada em 2018 pela aliança de um STF
covardemente genuflexo com um general exacerbadamente golpista; honrando sua
biografia, o petista em campanha prometeu um governo voltado à defesa dos mais
pobres, ao combate ao desemprego e à fome, cuja necessidade, por si só, é o
atestado de nosso fracasso como nação. Nas ruas conquistou o direito à posse
presidencial, ainda que aos trancos e barrancos, e a um custo que a história
contabilizará. Com o apoio do país indignado venceu um putsch fascista animado
pela solidariedade nem sempre silenciosa dos fardados. Mas, não obstante tantos
feitos, a governança é hoje seu desafio maior. Não se trata, tão-só, da
incolumidade do mandato conferido em eleição plebiscitária, mas da realização
de um projeto que tanto mira o aqui e o agora – o refazimento do Estado social
– quanto o futuro imediato, com a criação de condições políticas de
enfrentamento da ameaça fascista, abalada, mas não sepultada pela derrota
eleitoral (ao cabo de votação mais do que expressiva) do ex-capitão de
extrema-direita. O necessário bom êxito do governo Lula, por óbvio, não
interessa ao sistema empresarial-militar (intocado) que vem regendo o país
desde o golpe de 2016, e que constitui a retaguarda financeira e logística do
conservadorismo hegemônico.
A arte de governar, sob a cartilha da dominação de classe,
ensina proceder exclusivamente às mudanças que nada mudam, ou então governar em
condomínio. Os trilhos pelos quais transitaria o governo são demarcados pelo
grande capital e, por consequência, pela grande imprensa, pelo congresso
reacionário, pelos rentistas e
especuladores.
Lula resiste e engendra o salto para fora do labirinto.
Para disputar as eleições, o presidente montou a mais ampla
coligação de partidos e interesses políticos e econômicos jamais conhecida na
história republicana. Para governar estendeu-a ainda mais, caminhando o quanto
pôde à direita, até ao Centrão, onde, salvo engano, fincou o último marco.
Mesmo assim depara-se com dificuldades para levar a cabo seu programa de
governo, um projeto de caráter simplesmente social-democrata, despido de
qualquer insinuação revolucionária; dele
poder-se-á dizer que, atento às circunstâncias herdadas, persegue um reformismo
moderado e o fortalecimento das instituições democráticas tais quais são, ou
seja, nada que altere ou mesmo de leve ameace o atrasado capitalismo que nos
molesta. O sistema, porém, no meio do qual manobra o Banco Central, diz ao
presidente que lhe falta legitimidade para gerir sua própria política
econômica, nada obstante o respaldo de 52% do eleitorado às teses expostas na
campanha eleitoral. Diariamente, faça chuva ou faça sol, os editoriais dos
grandes jornais, os comentaristas de televisão transformados em cientistas
políticos e multiespecialistas, todos dizem ao governo o que lhe compete fazer
e o que não pode fazer: fundamentalmente cumpre-lhe pagar os juros escorchantes
estabelecidos e cobrados pela banca, e deixar de investir (ou “gastar”, segundo
o vocabulário monetarista neo-liberal). Os banqueiros e seus agentes, nas
dezenas de “consultorias”, corretoras, casas de crédito e quejandas (umas
formadas por ex-diretores do Banco Central, outras por futuros diretores do
Banco Central), liderados pelo presidente da autoridade monetária, enfant gâté
da grande mídia, conduzem o debate econômico
em torno da balela de que juro alto combate a inflação e
"gera confiança nos investidores". O presidente da república,
afrontado em suas competências, vendo ameaçada a realização de seu programa de
governo, é criticado por protestar contra uma taxa Selic de 13,5% contra uma
inflação de 3,5%. Voltamos a ser
campeões, desta feita de juros altos, os mais altos do mundo, ao tempo em que somos a segunda mais injusta
sociedade do planeta.
Que nos dizem esses juros?
O encarecimento da dívida pública onera o governo (o
orçamento da União legado pelo bolsonarismo prevê 247 bilhões de reais para o
pagamento de juros e encargos da dívida) ao tempo em que beneficia os
rentistas, cujos interesses se materializam na política do BC que intensifica o
desaquecimento de uma economia já estagnada, quando precisamos investir algo
equivalente a 22% do PIB, e presentemente só investimos 18%. A política
contracionista – aumento dos juros e cortes de gastos – é receitada no momento
em que os bancos privados, ameaçados em
seus lucros pela crise do grande varejo, optam pela retração do crédito.
Juntem-se juros altos e crise de crédito com corte expressivo de gastos e temos
as portas abertas para um ataque recessivo, após anos de estagnação econômica
denunciada por um PIB que há seis anos não ultrapassa os 2%!
Este, o projeto político vocalizado pelo BC e tonitruado
pelos “especialistas” da grande mídia.
O desafio presente, para as forças progressistas, é
assegurar ao presidente Lula condições de levar a cabo seu projeto de
recuperação econômica e política do país. Esse desafio, urgente e ingente,
ressente-se, porém, da fragilidade dos partidos de sustentação do governo – já
agravada pelo descenso do movimento popular e das organizações sindicais –, de
que resulta a necessidade de composição com os
donos do poder, o chamado establishment: um consórcio de forças
poderosas que compreende o grande capital e seus inumeráveis segmentos e
agentes, como a corporação militar e suas ramificações, fardadas ou não, o
poder legislativo (onde somos minoria), o poder judiciário, empoderado, e os
setores religiosos, de um modo geral
conservadores.
Lula só fará o que quer que seja próximo de seus
compromissos de vida e de campanha se em seu governo o país se reencontrar com
o desenvolvimento, o que, com os dados de hoje – e se não for possível quebrar
a hegemonia do BC “independente” e seus satélites –, trata-se de mero sonho de
uma noite de verão, em face dos custos do dinheiro que inviabilizam a produção,
mas fazem a festa dos especuladores, a erva daninha que tomou o lugar dos
empresários e hoje é a fração mais poderosa da classe dominante brasileira,
herdeira da casa-grande, a comandar o país a partir da Faria Lima – a casamata dos rentistas que se
financiam lá fora a juros baixos para aplicar aqui, sem risco cambial, com a
taxa de juros estratosférica que eles mesmo estabelecem para seu lucro
parasitário, em prejuízo da economia como um todo, impedindo investimentos e
agravando o custo da dívida pública (arcada pelo Estado), cujo peso termina
recaindo sobre toda a população.
Ao controlar o BC e ditar a política monetária, a banca se
permite estabelecer que o Estado deverá financiá-la por meio da emissão de
dívida (assim eliminando o risco inerente a toda atividade produtiva), e ainda
determinar o valor que aceita receber (hoje, uma taxa básica muito acima da
inflação). E se o governo da vez ousa reclamar, em defesa dos compromissos
assumidos com a população, o aparato comunicacional vocifera, em uníssono,
denunciando “intervencionismo”, “populismo fiscal”, “gastança” e assim por
diante. É uma completa inversão: o mercado financeiro, que nasce com uma função
suplementar, secundária em relação à economia real dos países, assenhorando-se
da política econômica...
Pesa sobre nosso destino uma classe dominante avessa à produção e ao trabalho, inimiga da
imaginação e do pioneirismo, que opta pela desindustrialização e retorna ao
arcaísmo da economia primário-exportadora e do rentismo. O atraso do país, absoluto
e relativo, o descompasso face às nações contemporâneas que realizaram suas
respectivas revoluções industriais, é fruto de opção consciente de nossas
elites, desde sempre alienadas. Seu legado é um projeto de dependência
política, ideológica e econômica
sustentado por um estado estruturalmente autoritário, um autoritarismo larvar, renitente em toda a história e dominante na
ordem política, nascido na colônia, filho do escravismo e do genocídio das
populações nativas, elevado aos extremos da violência no império e modernizado
na república sereníssima, fundada na exploração de classe. Esse autoritarismo é
a camisa de força de uma sociedade de cerca de 220 milhões de habitantes, dos
quais apenas 1º de sua população detém 27% de toda a renda nacional (The World
Inequality Report, 2022).
Essa classe dominante é o Minotauro faminto que espreita
Lula em seu labirinto, ansiosa por devorá-lo e assim pôr-se na segurança de que
tudo continuará como está, pois as
mudanças concedíveis são apenas aquelas que não podem passar das aparências.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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