O lugar do passado. (Emiliano José)

“Nunca entendi essa gente que anda ligeiro – disse Tertuliano. – O bom é ir devagar, descer, fumar um cigarro e ver o que ficou para trás”. A frase do personagem está no belo conto de Juan José Morosoli denominado “A longa viagem de prazer”, que dá título a uma coletânea de contos do autor uruguaio, cuja obra é tida como testemunho de homens solitários em trânsito para a extinção. Socorro-me da fala de Tertuliano apenas para dar duas ou três palavras sobre o passado e sua relação com o presente e o futuro, coisa de que pensamento do mundo tem se ocupado ao longo dos séculos sem respostas definitivas. Como filosofar é só em alemão, dou-me apenas ao direito do palpite, o que obviamente é uma ousadia.

Fui chamado novamente a esse debate no dia do meu aniversário, início de fevereiro, por um querido amigo, Carlos Sarno. Houve até alguma ênfase excessiva na discussão, como é próprio da conversação entre amigos. Ele insistia na importância da atualidade, do presente, e da necessidade de se apontar para o futuro, e criticava a tendência em mergulhar no passado. Discutíamos sobre a importância da elaboração da memória em torno da ditadura. Creio que ele tinha razão em alguns pontos, outros não. Não creio possível separar passado e presente, e o futuro que se constrói está sempre de algum modo vinculado a um e outro. A separação é sempre esquemática, teórica. Não há jeito de não olhar sempre o que ficou para trás, como diria Tertuliano.

As reflexões da Escola de Frankfurt são muito ricas quanto a isso. A cultura está sempre presente no pensamento de Adorno, Horkheimer e Habermas, além, claro, de Walter Benjamin, o mais heterodoxo e instigante deles, ao menos quanto a esta relação entre cultura e civilização, entre passado e presente. É impossível pensar a cultura sem imaginar uma relação entre presente e passado em todas as áreas da atividade humana. Se o pessimismo é parte daquela Escola, ele é ainda muito mais presente em Benjamin, que vincula necessariamente progresso e barbárie, civilização e uma progressiva destruição do mundo. Entre os mais pessimistas, encontraríamos um Freud, para quem “a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da “Criação”.

Benjamin talvez seja dentre todos eles o que mais insiste na importância de se olhar para trás. Em não deixar de registrar a barbárie e nem os sonhos semeados no decorrer da história. Muito do que hoje levantamos como ideais da humanidade – vamos lá, sonhos de uma sociedade feliz – estão presentes em outros tempos. Muitos foram vitimados pela barbárie sem abdicarem dos seus sonhos. Tantos passaram pela escravidão dos tempos antigos, pela Inquisição, pelo escravismo colonial, pelo nazifascismo, pelas ditaduras, especialmente no nosso caso, pelas ditaduras latino-americanas, sem se dobrar, mandando-nos, com sua resistência, desde lá, um recado para que não sucumbíssemos à tentação de deixar de lado aqueles sonhos, naturalmente renovados nas circunstâncias e conjunturas novas que vivemos.

Nunca deixar de olhar para trás para alargar as possibilidades do presente – foi de Boaventura dos Santos, numa palestra na UFBA, que ouvi a expressão alargamento das possibilidades do presente.

Foi-se o tempo em que imaginávamos um futuro radioso, com data marcada, fruto de uma evolução natural da forças produtivas e de uma correspondente reviravolta política que nos traria o paraíso. Esse pensamento estava fundado no nosso marxismo de manual.

A história é construção do gênero humano, nunca está dada a priori. Não é guiada por forças externas a ele. A barbárie tem sido criação humana permanente. Aconselha-se não esquecer disso. Para não repeti-la. E para tanto é sempre aconselhável olhar para Lonjura – um imaginário país jogado no passado, cujas lições nunca devemos esquecer. Nem deixar de lado os sonhos que lá se plantaram. Nem repetir, sob outras formas, as barbáries lá cometidas. Muitas das quais, aliás, lamentavelmente, tem se repetido. Contras elas, sempre, organizar pela política os sonhos de ontem e de hoje. E com a política, insistir na esperança de que outro mundo é possível. Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT-BA).

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