PSL e MBL já estão em campanha para as eleições municipais. E a esquerda?PSL e MBL já estão em campanha para as eleições municipais. E a esquerda?


É estarrecedor constatar que as eleições municipais não estão no centro do debate e da mobilização da esquerda atualmente. É mais frustrante ainda pensar essa postura é um mero reflexo de um processo que vem ocorrendo há muitos anos: o afastamento das lideranças políticas partidárias das camadas populares, esquecendo o trabalho de base, enquanto a extrema-direita ocupa esse vazio sem concorrentes.

Recentemente, a deputada Áurea Carolina fez um apelo importante para direcionarmos nossa atenção às eleições municipais. O pleito de 2020 está se aproximando, e a extrema-direita tentará eleger um exército de vereadores e prefeitos no Brasil todo. Se os extremistas conseguirem o que planejam, haverá a capilarização do bolsonarismo. Uma vez entranhados na micropolítica local, teremos anos e até décadas de avanço conservador e autoritário. Pode ser a pá de cal sobre nossas esperanças.

Não se trata de alarmismo. O fenômeno está se armando, uma vez mais, debaixo de nossos olhos. Mirando as eleições municipais, a campanha de filiação do PSL realizada em agosto conseguiu associar 188 mil pessoas em apenas um mês. As lideranças do partido deixam claro que o objetivo é atingir 1 milhão de filiados rapidamente, tornando-se um dos maiores partidos do Brasil junto com MDB, PT e PSDB. A campanha foca em dois objetivos: filiar pessoas no Nordeste e sair com candidaturas próprias em todas cidades com mais de 100 mil habitantes.

O MBL não fica para trás. Inicialmente, eles se valeram de uma estética moderna para falar de liberalismo e corrupção para a juventude. Mas suas lideranças não demoraram a abraçar o capeta. Apoiaram as pautas de conservadorismo moral e o próprio Bolsonaro. Assim elegeram quatro deputados federais e dois senadores na última eleição. Agora, oportunisticamente, tentam se reposicionar, distanciando-se do radicalismo bolsonarista. Aproximando-se no partido Novo, disputando grêmios estudantis e formando novas lideranças, almejam eleger centenas de vereadores.

Uma válvula de escape de parte da oposição neste momento tem sido se entreter com os barracos promovidos pelas lideranças do PSL, caindo no auto-engano de que a crise interna seria o germe da autodestruição do partido. O bolsonarismo, então, seria naturalmente enfraquecido enquanto a incompetência desse governo é escancarada. Como criticou recentemente o antropólogo Orlando Calheiros, há também a crença de que bastaria trocar de presidente nas eleições nacionais e viraríamos a página.

Penso que essa fé na autodestruição do bolsonarismo é arriscada de diversas maneiras. Em primeiro lugar, estamos falando de uma força política que nasceu da crise e que governa sobre o caos, mantendo-se no centro das notícias. Como já escrevi aqui, a lógica que elegeu Bolsonaro é a da emoção, do entretenimento e do show business. Seguindo a máxima do marqueteiro de Trump Roger Stone de que é melhor ser infame que não famoso, é ótimo que essas brigas se mantenham no centro do debate público, transferindo seguidores, afetos e desafetos de uma pessoa para outra.

Em segundo lugar, o bolsonarismo é maior que o PSL. A legenda, hoje em racha público, pode ser mera transição de consolidação da ordem conservadora. Como recentemente salientou a antropóloga Isabela Kalil, com base em evidências de pesquisa, é possível que, a médio e curto prazo, forme-se um novo partido a partir do núcleo conservador bolsonarista. O que importa aqui é que a extrema-direita ainda avança e procura formas de consolidar sua identidade.

Em terceiro lugar – e este é o ponto mais preocupante de todos – o bolsonarismo é maior do que Bolsonaro, como venho defendendo. Essa é uma tese compartilhada por muitas intelectuais que estão na ponta do sistema, como as já citadas Isabela Kalil e Áurea Carolina.

Não cabe aqui explorar as antigas raízes do autoritarismo e conservadorismo do Brasil. Tampouco afirmaria que o conservadorismo pode definir o Brasil e as classes populares. Entre um e outro, existe um mundo de complexidade de pessoas que se aliam a diferentes pautas em diversos momentos da vida. Cabe apenas lembrar que é na comunidade e no olho no olho que se pode disputar a escolha política de muitas pessoas que não podem ser definidas por uma única identidade: de evangélica, conservadora, punitivista ou empreendedora neoliberal.

É um erro de diagnóstico da esquerda acreditar que tudo na eleição de 2018 se passou no WhatsApp, ainda que reconheçamos que as fake news tiveram um papel decisivo. Como muitos pesquisadores do ambiente digital vêm avisando há muitos anos (como Daniel Miller e Juliano Spyer, por exemplo), existe uma relação de mútuo abastecimento entre o mundo online e offline. É no segundo, ou seja, nas relações de condomínio, igreja, vizinhança e trabalho que as notícias são comentadas ou contestadas.

Bolsonarismo incluiu quem estava fora da política
Durante dez anos pesquisei política e consumo em uma comunidade periférica de Porto Alegre com minha colega Lúcia Scalco, que segue trabalhando na região. Nesse tempo, vimos o PT retrair, e Bolsonaro avançar. É claro que a prisão de Lula é uma variável que poderia ter mudado o resultado eleitoral. Mas o fato é que Bolsonaro surfou sozinho em um espaço comunitário.

Observando os últimos dias da campanha – as pessoas falando do candidato no boteco, no muro da casa da vizinha ou na nova pizzaria do bairro–, vimos uma onda emocional de contágio crescer e se transformar em um tsunami. O bolsonarismo chegava via internet, igreja e escola. Por mais triste que isso soe, essa foi a forma como muitos se sentiram incluídos na política.

Disputar a comunidade contra um suposto “globalismo” é um princípio fundante do pensamento da extrema-direita global há pelo menos cem anos. Aquilo que eles chamam de “meta política” é a luta por valores morais que giram em torno da educação, da fé e da família. Eles sabem que isso tem que ser feito via micro-política.

Existem dois exemplos práticos de como essa lógica se remodela no Brasil. O primeiro é o que Kalil e seu time de pesquisadores constataram sobre a quantidade enorme de municípios brasileiros que aprovam a lei da Escola Sem Partido e a proibição do ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. Muito do que se passa na política local nessa área nem sequer pode ser mensurado, pois é um fenômeno que avança silenciosamente.

O segundo exemplo são os conselhos tutelares. Eles são uma forma de comunicação direta com as famílias e as comunidades. A esquerda se saiu melhor nessas últimas eleições. Mas isso só ocorreu porque tomou o susto de algo que era simplesmente “dado”, conseguindo reagir a tempo.

A lição dos conselhos tutelares ao campo da esquerda é muito clara: é preciso lembrar que a política não é circunscrita a Brasília ou ao Twitter. Somos corpos localizados em muitas comunidades, e é nessas comunidades onde o diálogo tem de acontecer. A melhor das lições é a de que, quando mobilizados, temos muitas chances de vencer.

Outra reação importante atualmente tem vindo das universidades que mobilizam seus membros e resistem ao Future-se e aos interventores. Também existem milhares de coletivos de periferias, de mulheres, de mães, de pessoas negras e transgêneras tentando segurar as pontas em suas comunidades. Talvez falte à esquerda partidária se conectar com esses espaços e ceder espaço a novas lideranças, deixando que elas assumam protagonismo.

O bolsonarismo não é um desvio de rota da nossa história, que podemos colocar para debaixo do tapete enquanto esperamos sentados as próximas eleições presidenciais. Está na hora de a esquerda deixar um pouco de lado a preocupação com seus pequenos desafetos, lamber as feridas das eleições e, como diria o mestre Paulo Freire, sair do revanchismo vingativo que nos leva a ser reativos. Não precisamos ser consumidos pelo sentimento de impotência de agir grande, quando o necessário é atuar no nível microscópico, pois é lá que a extrema-direita está ganhando adeptos.

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