Na caminhada para a terceira década do século XXI e 135 anos
passados desde a vitória republicana e a implantação de uma democracia que se
pretendia representativa, seguimos ostentando uma das maiores concentrações de
renda do mundo. Segundo o Global Wealth Report 2024, o Brasil é o segundo país
mais desigual entre os 56 analisados. Salvou-nos do gongo a África do Sul. Ente
nós o1% mais rico detém cerca de 28,3% da renda total do país, colocando-nos
entre os líderes globais nesse infame indicador.
Os números põem a nu uma disfunção estrutural que só tende a
agravar-se, pois permanecemos imunes aos avanços sociais reclamados. E se
depender da aliança das burguesias financeira e agro-primário-exportadora com o
atraso larvar, esse capitalismo –pai e mãe da injustiça social -- poderá
firmar-se como marca da história contemporânea. A base do mando secular da
classe dominante, a indicar a vitalidade insuspeitada do Brasil arcaico e
retrógrado que se sobrepõe ao país que sonha com a modernidade, o desenvolvimento,
a soberania e a democracia social. Um Brasil que, sugerem os números eleitorais
deste ano, parece não estar ilhado nos grotões dos “coronéis” analisados por
Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto). Uma análise rápida de nosso
formação dirá que o cordão umbilical que nos ata ao passado renitente é o
exercício da conciliação que, caminhando desde nossas origens coloniais,
preside o ofício da política, em todas as suas instâncias.
O Brasil, sociedade estruturalmente dividida em classes,
leva a paroxismos a desigualdade social, o império dos interesses do capital
sobre a dignidade humana. No entanto, não se registram conflitos ou
enfrentamento de classe, senão o avanço das milícias nas periferias de todo o
país, e aparentemente as grandes massas (à míngua de nosso discurso) sancionam
a política de seus adversários de classe e vida. Na aparência somos, no
capitalismo atrasado e dependente, uma sociedade em paz consigo mesma que realizou
a comunhão entre oprimidos e opressores: uma especiosa sociedade de ‘uma só
classe’, um país de ruas e praças sem multidões, sem povo mobilizado contra o
que o oprime. É a nossa jabuticaba. Um pequeno contingente controla o capital
e, a partir dele, controla tudo o mais: a economia, a política, os poderes da
república, os valores sociais e culturais... E, por consequência , a ideologia
da classe dominante se faz também a ideologia dos dominados.
Inclusive em nosso campo.
Com o olhar voltado para para a ordem colonizadora, e
particularmente para a guerra da Argélia e seus horrores, escrevia Franz Fanon no final dos anos 50 do
século passado: “A fraqueza clássica, quase congênita da consciência nacional
dos países subdesenvolvidos não é somente a consequência da mutilação do homem
colonizado pelo regime colonial. É também o resultado da presença da burguesia
nacional, de sua indigência, da formação profundamente cosmopolita de seu espírito”
(Os condenados da terra)
O governo Lula 3, limitado, pela dominância da ordem sobre o
progresso, é levado a ceder na busca de um equilíbrio fiscal que pretende se
explicar por si mesmo, como um dogma ou preceito de fé, ditado pelo
Deus-mercado, o governante real. O dominado adota como sua a ideologia do
dominante, e a promessa de um governo de centro-esquerda absorve o catecismo
neoliberal, sem olhos para ver seu fracasso, de que nós mesmos somos o melhor
exemplo. Dir-se-á que é a vitória das circunstâncias sobre a vontade: nosso governo
não é apenas nosso. Ao lado do presidente governa o poderoso Arthur Lira,
procurador do Centrão, chefe siciliano de um Congresso reacionário no qual
somos uma minoria sem força e muitas vezes carente de ânimo, o que realimenta
as fantasias de composição e aliança. No terceiro andar do Palácio do Planalto
também têm voz (ainda não fizemos a “revolução”) o grande capital, o
agronegócio e o mau humor da caserna. Como fundo, a hostilidade da chamada
grande imprensa, porta-voz do atraso.
Não se pode esquecer a influência desse quadro no processo
eleitoral lastimado.
Certamente nenhum observador da vida nacional cultivou
dúvidas quanto às dificuldades que teria o terceiro mandado de Lula, porque
elas foram anunciadas pela erosão das forças progressistas, principalmente a
partir dos últimos tempos do primeiro mandato de Dilma, e sua difícil reeleição
em 2014. Continuamos cegos e surdos mesmo diante dos idos de 2016 (por lembrar:
o golpe-de Estado parlamentar e o
interregno do vice infame) e a emergência do capitão e seu séquito de generais
e coronéis irresponsáveis. Posto diante da intentona de janeiro de 2023, quando
tínhamos tudo para avançar, o governo, em momento crucial do processo
democrático, que pedia sua afirmação política e militar, optou pelo recuo. O
que se segue são suas consequências. A sustentação do governo – um meio quando
se tem um fim claro à vista – toma o relevo requerido pelas circunstâncias: a
ampla aliança que possibilitou a vitória eleitoral, de um lado; mas de outro, o
fracasso dos partidos aliados nas eleições proporcionais e, por fim, os números
da apertada vitória, anunciadora da derrota nas eleições deste ano, deitando
justos temores sobre as eleições proporcionais e majoritárias de 2026. As
primeiras projeções dos números eleitorais de hoje sugerem uma Câmara dos
Deputados ainda mais reacionária que essa que aí está.
(Na FSP de 31 deste
mês lê-se o seguinte título de matéria estampada em sua página A-2: “Candidato
de Lira para sua sucessão recebe apoio do PT de Lula e do PL de Bolsonaro”).
O Congresso acelera a tramitação de Emenda constitucional
que visa a possibilitar a anistia para os criminosos do 8 de janeiro de 2023.
O projeto de país é necessariamente adiado. Governo e
esquerda permanecem sem programa. Que sociedade queremos, afinal?
Desatento, o campo da esquerda mostra-se surpreso com os
números das eleições municipais, e ainda não identificou seu papel no desastre.
Tende a ver os números como fenômeno em si, desapartado do processo social. A
maioria das formulações se restringe ao registro do óbvio crescimento das
direitas, mas retrocede quando se trata de discutir as razões desse avanço,
claro pelo menos desde 2018. E se esquece, ainda mais, a esquerda, de que a
direita avança sem resistência no território deixado vazio pelo seu recuo.
Recuo amplo, geral e irrestrito, porque se dá nos campos da
ação e da organização como resultado do refluxo político-ideológico que se
manifesta no abandono das favelas e periferias, no abandono da luta política,
no esquecimento de suas teses fundadoras, por fim, no abandono da denúncia do
capitalismo e na renúncia ao seu dever de contribuir para a educação das
massas. E, no entanto, ensimesmada na vã suposição de que sabe o que é melhor
para o povo. Interpretando religiosamente a formulação marxista do “determinismo
histórico”, pensa numa revolução que se fará por si mesma: bastaria, para isso,
pôr-se “do lado certo da história”, o que quer que isso signifique.
Este é o ponto crucial da análise política que, se corajosa
e honesta, pode sugerir uma revisão de procedimentos, e mesmo uma nova leitura
da realidade, pondo em xeque algumas certezas e axiomas adotados sem reflexão.
O fato objetivo é que a domesticação e a “moderação” nos
governos e na política, ademais de erro crasso severamente punido, não
contribuíram para o sucesso eleitoral almejado. É o que nos dizem os números,
em sua crueza. No plano político, a derrota é de igual porte, porque, por
omissão, fomos também superados no campo de batalha dos valores e do
imaginário. O discurso antissistema, deixado por nós ao desalento, foi tomado
de nosso campo e monopolizado pela extrema-direita, que assim se habilitou como
leito da indignação das grandes massas. Foi assim que elas falaram. O outro
lado de nossa inconsistência política é a quase unidade político-ideológica e
programática das direitas. A aparente pulverização de suas siglas e a disputa
pelo espólio do capitão escondem a unidade política. Como lembra Maria
Hermínia, “Minoritária no Brasil, ela [a extrema-direita) não é pequena nem
irrelevante e é mais militante e engajada que a direita pragmática (“O lugar
e a força da extrema-direita”, FSP).
Fica a questão: de que se alimentam a direita e a extrema-direita para
engordarem tão rapidamente?
As eleições de 2022 não são obra do caso.
A esfinge de Tebas, devoradora de homens, põe de lado o desafio das charadas e nos pergunta: por que o capitalismo, que fracassou como solução dos problemas colocados pela civilização, é o grande vitorioso de nosso tempo, e mais vitorioso ainda em países como o Brasil, onde as desgraças desse sistema se expõem o tempo todo, à luz do dia?
***
O Parlamento se defende – Na última quarta-feira (30/10)
teve seguimento, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, o processo que
visa a cassar o mandato de Glauber Braga (PSOL/RJ); iniciativa farsesca de fio
a pavio, a começar pelo nome-fantasia do agrupamento que apresentou a
Representação, com a bênção do coronel Arthur Lira. Desta vez, foi firme (e,
nalguns momentos, bela) a defesa do parlamentar fluminense – e do próprio
instituto do mandato popular – por parte de seus correligionários e não só. Dentre
todos, destaco Luiza Erundina. Os balbucios do esbirro da agremiação fascista
MBL não surpreenderam: a novidade ficou por conta do desempenho de Alberto
Fraga (deputado brasiliense que se orgulha de integrar a “bancada da bala”), o
qual, embora arrolado como testemunha de acusação, acabou fornecendo
contribuição relevante à defesa.
Restauração política – Em sua boa fase de autocrítica (mas
sem absolver-se de seus muitos erros, muitos responsáveis pelo que o país
passou a viver a partir de 2016), o STF anulou as penas que pesavam sobre José
Dirceu. E ainda há muito a rever, para correção, embora os danos jurídicos, he
morais sejam irreparáveis. A notícia muito nos anima, pois pode significar o
retorno de Dirceu à linha de frente da política, pobre de quadros como ele.
Espero que assim também pense a direção de seu partido.
Mais um adeus - Arthur Moreira Lima, o amigo admirado que
parte, não era apenas um exímio e mágico pianista, executante virtuoso de
Chopin e Tchaikovski (suas paixões), Brahms e o nosso Villa-Lobos. Deve-se a
ele a desmistificação da música clássica levando-a, em suas caravanas (algo
como 500), aos rincões mais desprezados pela cultura oficial. A última vez que
o vi foi numa manhã ensolarada de São
Sebastião (GO), na carroceria de um caminhão na qual montara seu piano de calda
para correr o Brasil levando a música erudita a um público que a ela não tinha
acesso. Harmonizou o clássico com o
melhor de nossa música, e fez-se intérprete de Ernesto Nazaré e Chiquinha
Gonzaga e enriqueceu o velho chorinho, de que se fez intérprete magnifico. Mas
pretendo ressaltar seu compromisso político. Quem não se lembra do Arthur
abrindo os comícios da inesquecível campanha pelas Diretas-já, executando o
Hino Nacional, e nos emocionando?
Por: Roberto Amaral.
*Com a colaboração de Pedro Amaral.
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