“João Cândido deve ser promovido a símbolo da dignidade do soldado brasileiro. Sua história deve ser conhecida nas fileiras. Sua imagem deve ser exibida com destaque nos estabelecimentos militares de terra, mar e ar”. Manuel Domingos Neto. O que fazer com o miliar.
A injúria é um padrão ideológico.
Enquanto a chibata que aviltava o praça é, ainda hoje, um
calo na história da corporação, o almirante Saldanha da Gama, conhecido como
“terrível chibateiro” é venerado, encabeçando uma lista de torturadores
fardados. Segundo Gastão Peralva o almirante Vandenkolk não se pejava de
afirmar que mais valia a chibatada, como castigo ao réu confesso, do que “os
maçantes e delongados conselhos de guerra”. Tobias Monteiro (Funcionários e
doutores) registra que fora da medicina, do direito ou da engenharia, “eram os
rebentos das famílias ricas encaminhados para o oficialato da Marinha”,
enquanto o racismo e a violência física, desumanizante, era a lógica da
disciplina militar. Um racismo que não
pode escamotear sua essência classista.
Sem alento para oferecer conselhos de leitura ao atual chefe
dos marinheiros, sugiro ao leitor as páginas de Adolfo Caminha (O bom crioulo)
descrevendo o suplício de uma sessão de chibatadas. O comandante do navio palco
da selvageria é o almirante Saldanha da Gama, também descrito por Gilberto
Freyre como “aristocrata” e “fidalgo”. Refiro-me seguidamente ao almirante
Saldanha da Gama porque o ódio ao marinheiro negro e libertador, se cola com a
reverência da caserna, ainda hoje, ao almirante chicoteador. Enquanto Saldanha
da Gama batiza o navio-escola da marinha – donde se conclui que a corporação
abona seus crimes -- o marinheiro negro que livrou a marinha desse
opróbrio-- é perseguido, mesmo passados
55 anos de sua morte. Contra essa
miséria, em simbiose com a qual nascera a Marinha e com a qual a corporação
mantinha sua disciplina de aço, dependente da destruição do caráter de seus
marujos, levantou-se o Almirante Negro, e no campo de batalha em que se
transformaria a Bahia de Guanabara, derrotou os fidalgos seus algozes, oficiais
da classe dominante.
A revolta dos marinheiros, contra os castigos e os baixos
salários, a escassa alimentação, o tempo de serviço exagerado, instalou-se no
dia 22 de setembro de 1910, no encouraçado Minas Gerais, liderada por João
Cândido. O que pleiteavam esses brasileiros desamparados, tratados pelos seus
superiores como rebotalho social? Apenas o direito de terem sua condição humana
respeitada. Está no manifesto lançado à nação:
“(...) Por isso pedimos a V. Exa. [dirigem-se ao presidente
da República] abolir o castigo de chibata e os demais bárbaros castigos pelo
direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada
de cidadãos, e não uma fazenda de escravos, que só tem dos seus senhores o
direito de serem chicoteados.”
O motim, que mobilizou 2 mil homens, duraria quatro dias, ao
cabo dos quais o governo entregou os pontos.
Presidente da República era o marechal Hermes da Fonseca que, acovardado
(a cidade estava sob a mira dos revoltados) e pressionado pelo Congresso,
negociou o cessar fogo, e na sequência, obra parlamentar, a Anistia aos
revoltosos (texto redigido por Rui Barbosa), aos quais foram dadas todas as
garantias devidas, para nenhuma ser cumprida.
À prática impune e centenária do crime da tortura, a marinha
brasileira de Tamandaré ajunta a felonia, marca de ferro em brasa da qual
jamais se limpará. Após entregarem as belonaves, os marinheiros foram presos,
torturados e muitos assassinados. Os sobreviventes perseguidos por toda a vida.
Todos os anistiados foram expulsos da marinha!
João Cândido permaneceu detido, a primeira vez, por 18 meses em uma
prisão subterrânea, a seguir internado em hospital de alienados, depois solto e
novamente preso (numa cela com 30 detidos, dos quais só ele e mais um
companheiro de cela sobreviveram). O herói, como quase todos os revoltosos, foi
condenado ao desamparo no qual viveu pelo resto da vida, no Rio de Janeiro,
vendendo peixe no mercado, até 1969, quando morre, na miséria, aos 89
anos. Assim age um Estado sem honra. E
agora, passados 114 anos, a Marinha, com o significativo silêncio do ministro
da defesa, investe desabridamente contra a honra do almirante negro e açoita a
memória dos revoltosos.
Mas ainda não seria tudo. Falta falar nos massacres da ilha
das cobras e do Satélite.
A anistia já havia sido defraudada com as prisões e as
expulsões dos praças que se haviam amotinado.
Os marinheiros que a repressão pôde identificar foram presos
e removidos à Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara, que servia como se base
naval fôra. Lá, grande número deles foi executado sumariamente.
O Satélite era um cargueiro mercante, no qual, às vésperas
do Natal, foi embarcado um número ainda incerto de brasileiros desagradáveis ao
governo do Marechal Hermes. Boa oportunidade para as fileiras também se verem
livres dos militares amotinados, e o evento foi exclusivamente de ordem militar, sem quaisquer considerações
com a organização política, ou econômica, sem qualquer nível de preocupação com
o processo social.
Deve-se ao jornalista Edmar Moal a recuperação da verdade em
torno daquele que certamente foi o primeiro levante de subalternos nas forças
armadas brasileiras A historia deve-lhe uma pesquisa preciosa. Refiro-me ao seu
livro A revolta da chibata, de 1979. Assim ele descreve a sinistra viagem do
Satélite:
“É difícil encontrar uma palavra que defina a viagem do
cargueiro do Loide Brasileiro, que transportou os rebeldes do “Batalhão Naval” e
dos vasos-de-guerra, fuzilando-os sumariamente em alto mar, a partir da saída
do paquete da Baia de Guanabara, na noite do Natal de 1910. Outros tombaram
assassinados nas selvas do Amazonas”.
O comandante de hoje diz que a insurgência é um opróbio, e
não põe na mesa o horror da tortura, dos assassinatos, como se a revolta fosse
fruto do nada, quando ela é sempre uma construção do opressor. Ofende os heróis
chamando-os de “abjetos marinheiros”, quando o levante já é um velho de mais de cem anos. Como
explicar o ódio senão como uma paranoia construída por séculos de lavagem
cerebral? O comandante de hoje acusa
nossos heróis de 1910 de haverem desrespeitado a hierarquia e a disciplina
militar, mas convenientemente silencia diante da revolta da marinha, de 1893,
quando oficiais e comandantes brancos e filhos da classe dominante, chefiados
por Saldanha da Gama, pretendiam depor o presidente da República. Silencia
diante da felonia dos ministros da marinha, ora na intentona de 1955, ora em
1961, e na traição à democracia em 1964.
E, ainda há pouco, no apoio de seu ministro à intentona de 8 de janeiro
do ano passado. E silencia diante dos crimes contra a democracia cometidos
durante mais de um século. Poque seus atores eram, antes de tudo, oficiais
superiores. E quase todos brancos. A lei da chibata e dos castigos jamais constituiu
um equívoco; trata-se de crime pensado pelo qual são responsáveis a Marinha
como coletivo, e os demais poderes da República que o toleraram desde sempre.
A marinha é, pois, hoje, ideologicamente a mesma, imutável
no tempo, blindada contra o processo histórico. Conservadora e racista.
O almirante comandante
de hoje, ademais de haver perdido excelente oportunidade de ficar
calado, excedeu-se, ofendendo a honra de João Candido, um herói sem medalhas,
mas, no contrapelo dos heróis oficiais, vencedor no campo da batalha, derrotando seus comandantes, e campeão no
apreço popular Ao fim, pobre e negro,
paupérrimo, perseguido por toda a vida
pelo Estado de classe, ademais de incuravelmente racista, João Cândido foi eleito herói (herói do
povo), pelo que talvez se possa chamar de consciência nacional.
O comandante da marinha, porém, qualifica os revoltosos
anistiados como “abjetos marinheiros” quando deles recolhemos os ensinamentos
da dignidade perdidos pela força naval. Ofende a Revolta da Chibata como
“deplorável página da história nacional”. Ora, dos marinheiros de 1910 somos
todos devedores, pois lhes devemos nos havermos livrado da escravidão mantida
na Marinha por seus comandantes, política e ideologicamente sempre os
mesmos. João Cândido não pode ser
chamado de intruso ou “insurgente” (ou o é porque era negro?), como dita o
comandante, mas um herói do povo.
Ademais, descabe às chamadas forças dar palpite sobre decisões políticas
do poder legislativo. Fosse outra a nossa república, e outra a correlação de
forças, o ministro da defesa já teria sido chamado, pelo presidente da
República, para dar satisfações sobre a indisciplina do oficial que escolheu
para chefiar a marinha.
Lamentavelmente, esse quadro infeliz é denotativo da
correlação de forças que controla/sustenta nosso governo. A história ensina que
se o recuo político pode ser uma
tática, bem sucedia quando ditada pela conjuntura, jamais poderá ser receitada
como estratégia. E nenhuma estratégia será capaz de enfrentar as dificuldades
de hoje (anunciantes das dificuldades futuras) se o ponto de partida não for a
organização social e o grande debate político.
Confesso minha dificuldade na tentativa de compreender por
que um governo do PT alimenta tanta resistência à organização e ao diálogo
popular
***
Honrando João Cândido – Em 2008 o Brasil prestou merecida,
mas retardada homenagem a João Cândido, quando o presidente da República, Luís
Inácio Lula da Silva, inaugurou, uma estátua do Almirante Negro, no Rio, de
Janeiro, na Pça XV. A crônica registra a resistência da caserna
Nísia Trindade, menos Faria Lima – Ausentes das cartas autoritárias, as vinculações de recursos da Saúde e da Educação são uma vitória do que podemos chamar de civilização brasileira, e apontam na direção do país que ainda sonhamos vir a ser. Contudo, em pleno governo de mudanças, de inspiração progressista, tecnocratas da Fazenda – desapartados da realidade do país onde vivem – discutem quebrar esses pisos constitucionais, em prol de um sacrossanto “arcabouço fiscal” imposto pelo andar de cima. Como não bastasse, nosso governo ventila a possibilidade de ceder (mais uma vez) a pressões da caserna e criar um piso de gastos para os engalanados oficiais. Mais que nunca, é preciso salvar o Governo Lula de suas piores ilusões, lembrar-lhe sua razão de ser e evitar que, no pleito de 2026, a centro-esquerda estenda o tapete para o retorno da extrema-direita ao poder.
Mistério na Corte – A deletéria tese do “marco temporal”,
que institucionaliza esbulhos e violências de todo tipo praticadas contra os
povos indígenas do Brasil, inclusive na história recente, e é defendida com
unhas e dentes pelo agronegócio mais boçal, teve sua patente
inconstitucionalidade devidamente reconhecida pelo STF em setembro passado. Mas
eis que, na última segunda-feira (em pleno Abril Indígena!), o senhor Gilmar
Sempre Ele Mendes provoca uma reviravolta no tema, ao suspender as ações em trâmite
na Justiça que tratam do referido “marco”, e determinar um processo de
“conciliação” sobre o tema. Fica no ar a questão: que razões animam o
empresário e político mato-grossense, que também atua como juiz?
O passado reclama: - O Estadão de 1º, de maio reclama contra
o aumento do emprego. Mais gente ganhando mais e gastando mais risco de
inflação. Donde se conclui...
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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