O Congresso -- com
seus atuais presidentes considerados tanto do ponto de vista político quanto do
ponto de vista ético -- não é fruto do
acaso. Resulta do quadro geral da política brasileira, caracterizado pela
decomposição da representação popular pondo por terra o princípio básico da
democracia, a saber, a legitimidade dos instrumentos da soberania popular. Faz
o jogo do atraso quando intenta, como agora,
transformar a chefia do Executivo em um condomínio, elevando o
presidente da Câmara ao papel de co-governante como se parlamentarista fosse o
regime, e intentando rebaixar a presidência da república ao exercício exclusivo
de funções cerimoniais. Usurpador se
revela quando o capo da Câmara se atribui autoridade para nomear e demitir
ministros e altos funcionários; ponta de
lança dos herdeiros da casa-grande, toma
para si a administração da despesa pública para dirigi-la conforme seus interesses
de classe, que não são nem podem ser os da república. Ainda age, nessa
amputação do presidencialismo, quando, como mais visivelmente agora, intenta
impedir o governo de governar,
despindo-o da arma constitucional que é a gestão orçamentária, ou
obstaculizando a tramitação de medidas de seu interesse.
O conflito que está por detrás das aparências não é com o
Poder Executivo (instrumento crucial para o exercício do governo de classe),
mas com o que poderia ser o governo do presidente Lula.
O bloco do atraso,
que não precisa do carnaval para desfilar, ainda teme o PT de 1989. Embora
senhora de baraço e cutelo do poder, a
Faria Lima ainda teme um governo de mudanças. Esse jogo já vimos em 2015,
quando Eduardo Cunha, fôrma ético-política do deputado alagoano, comandou a
desestabilização do governo Dilma, preparando o terreno institucional para o
impeachment, e o mais que se viu, e, lamentavelmente, ainda se vê e se sofre,
pois ainda não nos foi possível resgatar os escombros e construir novas vias do
desenvolvimento nacional. A crise politico-institucional-social permanece
agônica.
Vivemos, presentemente, uma tentativa de repeteco histórico
– caminhando para uma tragédia ou uma farsa, pois essa é a ordem
histórica. Daí o garroteamento do que
quer que seja o projeto Lula-PT, nada obstante a política econômica neoliberal,
e a promessa de déficit zero.
No fundo, permanece o transe, a contenção do progresso
social de que dependem as grandes massas para sobreviverem. O conflito ideológico é entre expectativa de
mudança e garantia de continuidade. Do ponto de vista político ele se expressa
na subordinação dos interesses do país aos dos donos do poder. A certidão da
história nos diz que o resultado é sempre a sotoposição dos interesses
nacionais e populares. O imobilismo social é a chave para a manutenção dos
privilégios de classe e da exclusão das massas postas à margem do Estado. Lula continua inconfiável, apara o andar de
cima malgrado os acenos da centro-esquerda a um compromisso histórico.
O poder da minoria (os 10% de brasileiros mais ricos detêm
cerca de 60% da renda nacional, os 50% mais pobres respondem por apenas 10%. O
1% da população mais rica concentra 27% de toda a renda nacional.) cobra ainda
mais garantias de que as mudanças de sistema sejam somente aquelas que
assegurem o avanço e consolidação de seus interesses. Nada que ponha em jogo o mando secular da
casa-grande e seus herdeiros de hoje pode ser ousado. Em outras palavras todos
os governos e todas as experiências, das democracias às ditaduras, são
admitidos, desde que não alterem – ou possam alterar, ou aparentem alterar – a
essência do poder econômico.
Daí ser nosso país um exemplar cultor de golpes de Estado (e
só pode promover golpe de Estado quem controla o poder), contribuindo para a
ciência política com a experimentação dos mais diversos modelos. Desde 1822
vivemos de assaltos político-jurídicos
todos bem assimilados pela institucionalidade, de permeio com
“pronunciamentos” dos militares, seja consolidando fraturas, seja promovendo-as
mediante a violência da ditadura.
Eis uma jaboticaba de nossa política: o parlamentarismo não
é um sistema de governo, mas uma gazua para golpe de Estado. Foi tentado pela
direita na Constituinte de 1946 e enfim instaurado no golpe de 1961, como
condição, imposta pela caserna, para a
posse de João Goulart na sucessão de Jânio Quadros, para em seguida ser
rejeitado pela soberania popular no plebiscito de 1963, na constituinte de 1988
e no plebiscito de 1993. A direita inova mirando sempre contra a democracia e a
constituição. Derrotada seguidamente pelo voto popular, despede-se da via
constitucional: pretende, é o golpe de nossos dias, implantar o parlamentarismo
de ocupação. É o golpe de nossos dias. A Câmara dos Deputados é seu aríete.
A oposição de classe ao governo Lula é mais ideológica e
ranzinza, movida por preconceitos, do que política, posto que a continuidade do
mando não está posta em questão por qualquer força política. A
social-democracia pede, apenas, um pouco de ar para a sobrevivência das grandes
massas: um quê de desenvolvimento econômico com progresso social. Para ser
explorado, o trabalhador precisa estar de pé.
Nenhuma iniciativa ou proposição deste governo ameaça os
estéreis lucros do sistema financeiro (segundo o Valor, o lucro dos grandes
bancos brasileiros deve crescer 30% no quarto trimestre) e dos especuladores da
bolsa, muito menos ameaça o agronegócio troglodita.
Mas a Faria Lima não gosta de Lula porque o vê distante de
Wall Street, e os militares – que
conservam a curatela sobre a vida civil -- têm suas cabeças em Washington (mais precisamente no
Pentágono) enquanto seus corações transitam entre Hollywood e West Point. Assim desgostam de Lula -- cuja eleição
tentaram impedir e cujo governo tentaram inviabilizar dando mão amiga aos
insurretos de 8 de janeiro -- como desgostavam de Getúlio, Juscelino e Jango, e
não assimilam uma política externa independente das conveniências da Casa
Branca.
Ademais, o plano internacional não nos favorece. Nosso
continente vive óbvia crise politica, da Argentina à Venezuela, envolvendo
antigos companheiros políticos e parceiros econômicos relevantes. Avançam os
governos de direita, dos EUA à Europa, em guerra. Crescem em toda a parte as
políticas protecionistas e, respondendo à crise social, o xenofobismo.
Assistimos a um ciclo reacionário em plena crise do neoliberalismo e das
ranhuras do imperialismo. Destaca-se o belicismo sionista. E, consabidamente, o
imperialismo norte-americano, com Kennedy, Clinton ou qualquer dos Bush, ou Obama ou
Trump ou Joe Biden, não alimenta simpatia por nosso governo, e muito
certamente se vê agastado com a tentativa de andar com nossas próprias pernas
e pensar com nossas cabeças, quando a esquerda aqui (incluindo o PT) e em quase
todo o mundo, dá sinais de acomodação à ordem liberal e se distancia de seu
passado revolucionário. O limite da
esquerda é o reformismo em medida que qualquer social-democrata, mesmo sem
haver lido Keynes, adotaria.
A grande imprensa, reprodutora ideológica dos veículos internacionais, permanece em contradição com as aspirações nacionais: antinacionalista e anti desenvolvimentista, resiste a qualquer política de proteção da indústria nacional, continua repetindo o Gustavo Corção e o Eugenio Gudin dos anos 40 do século passado. Critica a decisão de Lula de recusar as exigências da UE para o acordo com o Mercosul, e no mesmo passo defende a abertura do mercado nacional das compras governamentais.
A classe dominante colocoa para Lula – e para todos os
ocupantes da presidência – a disjuntiva capitular ou resistir, nesta caso
concorrendo ao impeachment. Na última hipótese perde o poder de que já carecia
(Dilma não chegou a governar em 2015); na segunda hipótese conserva a
hospedagem presidencial e fará crescer o leque de suas viagens internacionais.
Lula não consegue
sair de seu labirinto, fundamentalmente porque se reserva a negociar com seu
carcereiro. Dilma não pôde dirigir-se às massas organizadas, porque naquela
altura já carecia de apoio popular, seu partido cedo ensarilhara as armas e o
movimento sindical cuidava essencialmente de suas reivindicações econômicas.
Não é este, porém, o caso de Lula, ainda hoje a mais importante liderança
popular dos tempos republicanos. Por que, então, a permanente retranca?
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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